"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Para acalentar um amor


Escancara o amor que guarda avaro
Como se fosse ouro:
Ele será o seu único amparo,
Seu único tesouro.

Mesmo que nunca saiba protegê-lo
Dos ventos que hão de vir,
E que a chama se torne um dia gelo
No vindouro devir,

Escancara a violência de querer
Encontrar-se noutra alma,
Escancara, escancara todo o ser,
Sem vergonha nem trauma.

Escancara o amor que guarda avaro
Como se fosse ouro:
Ele será o seu único amparo,
Seu único tesouro.
Perdizes, novembro de 2009

O diletante

Apesar da roupa velha,
Cheia de manchas e furos,
Do chapéu de abas cansadas
E dos passos inseguros;

Apesar dos aros tortos
Nos óculos mal cuidados,
Das calças puídas grossas,
Da feiúra dos sapatos;

Apesar da embriaguez
Tomar-lhe todo o dinheiro,
E de ter por agiota
O sórdido taberneiro;

Apesar da fama ruim
Debitar o seu imposto,
E a escolha da gravata
Ser de um extremo mau- gosto;

Apesar do pouco fôlego
E da tosse impertinente,
Dos cigarros mui baratos
Comprados inutilmente;

Apesar da dor que sente
Ser apenas o prelúdio,
Das horas insones gastas
No desespero do estudo;

Ele inda vai escrever
Sem objetivo, sem meta,
Pois sua maior diversão
É fingir-se de poeta.
Perdizes, novembro de 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A janela do quarto

A janela vidro e aço
Abre o mundo mas divide
Duas formas alternadas:
O ver-se com olhos mais simples,
Na separação de outro espaço -
E ainda outro que os prescinde.

A altura da janela
Não dá vertigem nem medo,
Mas esconde na esquadria
Súbitos segredos.

Clara a cor, já desbotada
Pelo tempo os malefícios
A janela envidraçada
Dá de frente para o Cristo.

Tal estátua - não de gente –
Tem os braços sempre abertos;
No disforme do concreto,
Vem abrir fechar secretos:
Expande-se, logo o sol
Clareia o branco dos braços
Numa estatura de cal
Qual gigante dos espaços.
Alinha-se, independente,
Contra o verde ao seu redor;
Tal estátua – não de gente –
Mas parece ter suor.

O que constroem, da janela,
Deixa ver incongruências
Da falta de arrimo, poste
Sem dividir dependências.

A luz artificial
Que brota pela janela
Deixa ver o claro elétrico –
Um cego às apalpadelas.

Diversidade de esquadros
Outras janelas vizinhas
No fumê de seus matizes
Reencontram-se, restritas
Ao ângulo fantasiado,
Ângulo morto, invisível
De um lado em outro lado
Só se vê possíveis trincos.

Dessa altura momentânea
Que é estar sobrepesando
O vazio que há embaixo
Machucado subcutâneo,
Mede à força com arrasto
O sentir-se nas alturas –
Palmo a palmo, braço a braço
Exato de arquitetura.

Nessa divisão real
Do exterior com o fechado
Principia outra medida
Da janela até o asfalto.

Três andares, três colunas,
Antitéticas ao três:
As colunas retilíneas
Muita brita e robustez,
Descascam, se no horizonte
A abrangência está completa;
Alheias a qualquer homem
De inteligência arquiteta,
Tais colunas necessitam
Da metálica estrutura
Que delimita os contornos
De uma a outra coluna.

Da janela do meu quarto
Dividi outros espaços:
Luz contínua que brota
Refestela-se, exata;
Dentre todos os quadrados
O maior é sempre másculo:
Qual o homem sem medidas
Que ilimita o próprio estado.
Perdizes, novembro de 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


Cansei-me de esperar, Musa querida,
Pelo afago sereno do teu gesto;
Nada percebo, nada sou na vida,
Só em verso medíocre manifesto
A minha égide, qual fosse Efesto
No pesadelo de forjar tal arma;

Sou um guerreiro, um guerreiro sem batalha,
Fui Dom Quixote, mas sem moinhos de vento;
A minha guerra é outra: é contra o pensamento,
Possuo no pescoço a mais fria navalha.

Musa fatal! Teus lábios, quem mos dera!...
Já não espero a chance de mordê-los,
Nem necessito de sentir-te minha!
Jamais! Jamais! A terra os meus cabelos
Já afaga! O frio, a campa, a noite fera
Está ao meu lado, sempre ao meu lado caminha!...

Daí, por pouco, me fizera louco,
Louco de pedra, doente dos doentes,
O meu desejo trago entre os dentes,
Minha loucura cresce, pouco a pouco,
Como se me viesse uma ânsia de degredo,
Como se a vida me tecesse a medo
Eu faço desta insânia a minha prece.
O que é eterno nunca esmorece.

Ó virgem das celestes alvoradas!
Vejo cabeças de crianças, decepadas,
Observo os sacrifícios mais abjetos!
De pesadelos os meus sonhos vão repletos,
Apenas sinto, com a cabeça muito calma,
A noite, a noite a extinguir minha alma!...

Como se navegasse ao léu, sem direção,
Aberto aos ventos vai meu coração.
Sem amor para amar, sem beijos pra sorver,
Só me resta o infortúnio de ver-me morrer!

Nada da vida vale a pena, nada é real,
Ó minha Musa, ó minha Musa divinal...
Dá-me o perfume que teu corpo encerra,
Aroma tal que não encontro nesta terra...

Onde estão minhas asas? Será que as cortei?!
A brisa está propícia ao vôo do poeta.
Mas prefiro o abismo... aonde reinei
Quando tive de ânsias a alma repleta...

Se ainda desejo a tua presença
É porque, idólatra, não me desfiz da crença.
O Nada que busco compele-me a amar,
O peso das asas me priva de voar.

Os tempos de vitória, aqueles tempos,
Na sucessividade dos momentos
Apagaram-se. Agora, em tempos de paz,
Sinto-me um vagabundo, mutilado e incapaz.

A metafísica! Pensar depois do túmulo!
A podridão revela-se em cada sinapse,
Poder, com a mente fraca, atingir o ápice!...
Mas quando penso, sofro o acúmulo
De não poder pensar, de reduzir-me a fumo,
De sofrer cada angústia, cada desespero,
Do interior do cérebro à raiz dos meus cabelos...

Como quem já morreu e ainda vive
Minha vida defunta se divide
Entre olhar o que foi, o que já não existe,
E o presente irreal, que me deixa mais triste.

Os tempos de colheita – eu que nunca semeio –
Cobrem de arrependimento o meu enleio;
Se nas covas profundas meu corpo estremece
É de nunca ter tido o calor de uma prece!...

Cansei-me de esperar, Musa querida,
Pelo afago sereno do teu gesto;
Mas se de nada valho, nada sou na vida,
Ainda tenho forças pra mostrar-te o quanto presto!
Perdizes, novembro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O Deus destas esferas


O sol se põe. A máscara noturna
Aparece magnífica e soturna.
Enquanto os olhos do áureo astro morrem, as estrelas
Traçam uma dança luzidia pelas
Curvas aéreas do horizonte.
Aves cansadas, de rapina,
Voltam aos ninhos, recebendo a aragem fina
Pelas asas compridas.
Corujas aboletam-se entre ermidas
Sonhando a solidão de outras vidas.
Enquanto os animais tendem ao sono
Seus instintos têm ânsias de abandono.
Adormecido o mundo, a lua ressuscita
Trazendo a luz que a noite necessita
Para inspirar insones mensageiros
Que carregam no seio os ímpetos primeiros.
A noite é bela para quem medita
E traz consigo a alma aflita.
A Humanidade dorme
Na solidão enorme.
Mas como em toda regra há exceções,
No seu próprio compasso os corações
Batem, e a forma com que batem é que governa
O reino físico da alma superna.
Em cada singularidade, em cada estouro,
O Ser recebe o seu maior tesouro:
Continuar vivendo, não obstante a morte
Ser a certeza que põe termo à sorte.
No alto do monte, as pedras são espelhos
Da lua, emaranhadas nos artelhos
Antigos de árvores e de heras.
As rochas contam muitas primaveras.
Desde o início dos tempos, quando o mundo
Nascera no Universo - esse abismo profundo -
Os corpos minerais viajavam como as aves,
Num desejo feroz de sobrevoar todas as naves.
Por acidente (ou, como queiram, por evolução)
Da pedra concebeu-se a plantação.
Que distância entre as pedras e a clorofila...
Sequer a biologia é capaz de medi-la!
A verdura é o oposto do minério,
Pena a ciência os não levar a sério...
Quando é mister alimentar a fome
Não há conhecimento que se some
A tal ânsia nervosa, a tal desprendimento,
Que o da terra seca alimentando-se do vento!
Parindo plantas e plantando paus
No matemático exemplo do caos,
Fora das espirais ou dos efeitos-borboleta
A Natureza é o deus deste planeta.
Perdizes, novembro de 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2009



Fiz do céu um fardo
Azul de carregar,
Pesado pra sentir
Demais.

Fiz da juventude
Oh, minha amante!...
Um braço torto
Que se despedaça e cai.

Senti-me diferente
Como o Deus
Sem par.

__Ah, mas és jovem
Para continuar – disse o mundo
Aos meus ouvidos de barro.

SSSSSSSSShhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!!!
O vento passa e tropeça.
Nas nuvens.

Nunca serás tão belo
Quanto és.

Irmão da Tristeza,
Genitor do Sol,
Estrelas multicores.

Somos Astros
Sem Universo.

Perdizes, outubro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O homem na janela


__ Ele me parece terrivelmente infeliz!... - disse a garota que o observava, a fumar, encostado à janela.

__ Sim, é muito infeliz. Mas tem um ar tão superior que a maioria das pessoas pensa que a vida lhe deu apenas dias bons. Escolheu o caminho mais difícil - o da Arte - não só a Arte como um objetivo, na maioria das vezes fútil; ele vive essa Arte, contempla o céu de uma forma que eu jamais conseguiria... Arte vivida. Além disso, sente demasiado. Entrega-se ao amor de forma estarrecedora, vive-o em cada respiro, busca a mulher amada em cada pensamento, desespera-se em cada gesto. Eu sei que ele ainda ama, ama da mesma forma que antes, mas agora é pior: ele ama e despreza, deseja e odeia. Se você soubesse a quem ele vota todos os seus dias, ficaria estarrecida. A mulher a quem ele adora - pois ele em verdade a adora - é o oposto de sua opulenta erudição.

__ Ela o desprezou? - indagou a jovem.

__ Sim. Talvez por simples capricho de mulher inexperiente e tola, ou
talvez ainda por medo. Medo de se confrontar com tamanha sensibilidade, tamanha entrega por parte dele. Medo até mesmo de que ele, ao contemplá-la com os olhos cruéis da realidade, tomasse-a pela forma com que ela mesma se vê.

__ Um homem desses deve ser um abismo imenso, um ser de matizes raros.

__ Venha comigo, eu to apresentarei.

Perdizes, outubro de 2009

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Promessa adiada


Prometi-me esquecê-la quando pude
Reconhecer, ainda assim com pena,
Que o meu amor, tão cheio de virtude,
Era um ator medíocre entrando em cena.

Prometi acabar com essa história
De ficar lamentando o que pudera
Ter sido, e no vazio da memória
Apreciar a suposta primavera.

Nesta ânsia de delírio e de tormenta
Minha fronte se torna macilenta
E os meus lábios destilam sangue e fel;

Sem cansaço, teu nome inda persigo,
E em nisso habita o espectro do perigo:
Renegar o amor sendo-lhe fiel...
Perdizes, outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Espelho vivo


É um mendigo que se orgulha
De ter perdido a própria casa
E agora a casa ser a rua.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Soneto


A quem pudesse errar assim como eu
Amante do erro sou, e mais pudesse
Cantar com mais tristeza do que Orfeu
Cantou sozinho a derradeira prece;

A quem pudesse amar como amei
A criatura indigna que despreza;
A quem soubesse a solidão de um frei
Que não tem esperança e ainda reza,

A quem soubesse ver-me como sou
E a minha vida a seiva alimentasse
No acalento materno de outra infância...

Eu lhe daria a dor de quem amou
Traduzida num beijo alheio à face.
Um beijo sem ternura e sem ânsia.
Perdizes, outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O retorno


Voltou a fazer versos
Com o quase o mesmo arroubo
Daqueles outros tempos
De louco.

Os bolsos sem vintém
Reclamam alimento.
Prometeu possuí-la
No vário do momento.

É mais um ser eterno
Mas inda não é anjo.
Um pouco mais sincero
E estranho.

Ensimesmado, rói
O pão que lho mandaram.
Observa-se no espelho
E vê que é muito raro.

Mas sempre que alimenta
O corpo de misérias,
Rebenta no seu corpo
Outra moléstia.

Pouco sabe da vida
Egressa (se a teve);
Esconde os infortúnios
E tem sede.

Pouco sabe do amor,
Apesar de estorcer-se
Quando possui um corpo
No ardor da rede.

Enquanto vive, vai
Por caminhos estreitos
Desordenando vidas
E entorpecendo leitos.

Talvez da mágoa guarde
O círio e a vela acesa;
Talvez sua musa impura
Não possua beleza.

Os versos, as estrofes,
As rimas e a métrica
Nascem silenciosas
No berço do poeta.

E quando ele acredita
Saber fazer poemas
Mal sabe que só paga
As próprias penas.

Assim como se envolve,
Assim como se encharca
Do pranto que o comove,
Da máscara que o guarda

Não pode ser sincero
Mesmo que fosse em sonho,
Não pode ser na vida
Do lar paterno o escombro,

Mal sabe, inconseqüente,
Dos atos que produz
Nem se lhes toma conta
Nem se lhes reconduz.

Voltou a fazer versos
Feroz e solitário.
Voltou a fazer versos
Como um desesperado.
Perdizes, outubro de 2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ocaso


O sol vem coar as lágrimas
Sem as secar.
Nem poderia fazê-lo:
Há muita água pras enchentes.

A lua é amiga dos insones
Que trocam o sono pela abstinência de acordar.
Nunca serás amante, lua dos amantes.
Proibiram os astros de amar.
O amor é só dos homens.

Amei como todos amam.
Amei ainda mais.
Mas não fui amado como necessitava.
Será o amor necessário?

Ensinaram o céu a não pedir favores.
Ensinei pouco, aprendi raro.
Ensinamentos e decepções
Cobrem o céu dos homens.

Muita vez, quando observava as estátuas
Também chamadas de seres,
Tive inveja dos mármores
E das estalactites.

Mundo mineral, sou teu apóstolo.
Ensina-me o rumorejar da floresta
e o silvo das montanhas.
Rochas há que sonegam
A umidade das nuvens.

Se é tão sinuosa a estrada,
Por que a devo endireitar?!
A ferramenta cai do gesto,
Múltiplo de prata.

Só há razão se houver debilidade,
Só há tristeza se amor feroz
Morder-te o pescoço.

Nunca mais.

Apagão


Apagão
As luzes da cidade se apagaram
Mal a noite veio.
Nem estrelas nem postes
Iluminam a cidade.

Os transeuntes sumiram-se na bruma
Ainda mais escura.
Paixões de momento esvaziam
O ritmo cadente das almas.

Há carros, buzinas e faróis
Dando vida à estrada e às ruas.
Existência, asfalto e solidão.

Deus caminha com pés de rinoceronte.
Os homens são submissos,
O trabalho verga os ombros de quem o faz.

Sem vitrola e sem versos, o poeta quer vinho.
Sangue e espasmo e morte, talvez.
Lírios no campo observam mulheres
A cantar.

Retinir de auréolas no céu,
Abusões contra as sagradas meditações
Dos deuses.

Há tanta dor sem remédio
Que os outros remédios pouco valem.

Do amor a nascente água jorra,
Fonte pura sem mácula desce a montanha
E vira esgoto sem haver matado a sede
De quem ama.

Que criação é o amor!
Doa-se o arado e morre-se de fome.
Nem sementes nem terra -
Só arbustos retorcidos.

Esperança dos que amam
O que n’alma padece
Reflete mágoas
Inextinguíveis.

De todas as mágoas pertenço.
Perdizes, setembro de 2009

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O corpo do louco


O corpo atávico do louco
É meu objeto de poesia:
Se co’ ele escrevo muito ou pouco
O que me vale é o arroubo
Da sua forma retilínea.

Não é um corpo como os outros,
É mais orgânico e sadio;
Quando se molha, vai, aos poucos,
Alimentando-se do rio.

Não é a vida que o pranteia,
Tampouco o sol que no céu arde;
Nem mesmo a aurora prazenteira
Aclara o escuro de sua tarde.

Não é desejo o que possui,
Nem é veneno o que o mata;
É mais aborto do que luz,
É mais diamante do que prata.

Não se aclimata nesse clima
De dias quentes, noites mais.
Quisera tempo de neblina
Com nuvens sujas de cristais.

As roupas - meros artifícios –
Nunca lhe servem com primor.
O corpo vale por seus vícios,
O maior deles é o amor.

Sapatos flácidos, furados,
Sem sola, soltos nos contornos
Dos pés escravos dos sapatos,
Sapatos vítimas dos donos.

Os óculos de impróprio grau,
De lentes densas de miragens,
Dão a ilusão de que faz mal
Deixá-los castos de saudades.

As calças velhas remendadas
Mui companheiras da sujeira
Que habita os trilhos e as estradas
E deixam pó na penteadeira.

Tudo isso, o corpo, quando morto,
Mal saberá por que valia
Os homens trocam o conforto
De andarem nus como o faziam.

O corpo nunca é repasto
Mesmo que a morte dele coma.
O corpo do homem ou do sapo.
A mesma carne, o mesmo aroma.

O louco segue, e não entende
Por que ganhara essa matéria;
Não se debocha de um presente,
Mesmo que seja a própria terra.
Perdizes, setembro de 2009

Soneto do amor alheio


É necessário amar a juventude
Mesmo nas horas em que se deseja
Fugir pr’a imensurável altitude
Aonde ninguém é triste nem peleja.

É necessária a força da virtude
E a coragem de sermos realmente
Os que ultrapassam a vicissitude
E espalham flores nesta terra ardente.

É necessário amar, como quem ama
E tem no amor a inextinguível chama
Que clareia o percurso não trilhado.

É necessário amar e ser amado.
Pena que o Amor, alheio a qualquer verso,
Faz-se surdo enquanto amo e sou diverso.
Perdizes, setembro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A morte da Musa


Há segredos escuros em tu’alma,
Ó Musa do celeste firmamento.
Por trás da névoa de tua face calma
Há uma tempestade de tormento.

Deixaste o desespero vir no vento
Quando o pranto cobriu-te a aridez d’alma;
Agora que és escrava do Lamento
A calma que possuíste não te acalma.

A honra de louvar-te tu me deste:
Tuas vestes alvas eu toquei faminto,
Abrasando com sangue o azul celeste;

Mas agora que morres na desgraça,
Só me resta beber da fina taça
Onde deixaste a dor que agora sinto.
Perdizes, setembro de 2009

A decisão de outros caminhos


Quando soube que Amor o não queria
Para o banquete do estertor carnal,
Desprezou a mulher que dele ria
E foi tentado a praticar o Mal.

Deserto o peito, ainda conseguiu,
Nuns laivos acres de cantor do azul,
Reconstruir de Nada seu covil
Para abrigar o Sonho ainda nu.

Viu-se senhor dos ares rarefeitos
Onde o recôndito de pouco-ser
Escraviza o talento dos Eleitos;

Mas decidiu seguir outros caminhos
Como a ave nômade que estende as asas
E procura o conforto de outros ninhos.
Perdizes, setembro de 2009

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Entrega


Entregou-se totalmente às delícias da mais comovente e profunda das paixões: o amor que se contenta em contemplar e admirar. Foi sacudido por incontáveis desejos reprimidos, nuances de paixão tão vagas e tão profundas, tão arredias e tão avassaladoras que talvez não seja possível encontrar um termo de comparação que as possa explicar. Elas recordam perfumes, lembram nuvens, evocam raios de sol, sugerem sombras... tudo aquilo que na natureza pode brilhar por um momento e então se desvanecer, avivar-se como uma chama derradeira e então morrer, deixando como único rastro as emoções que perduram por longo tempo no fundo do coração. Enquanto uma alma é jovem o bastante para se conceber romântica, sabe ver na mulher mais do que simplesmente uma mulher. A maior felicidade que pode alcançar um homem é amar o suficiente para sentir mais alegria ao tocar uma luva branca, ao roçar de leve uma madeixa macia, ao ouvir uma frase dita casualmente, ao lançar um olhar sem ser observado – do que gozar da posse mais ardente de um amor correspondido.
Os infelizes privados de afeto e que consomem as mais belas horas da juventude em longos trabalhos são os que mais rápido se entregam à ação destruidora de uma paixão. Seus corações são desertos e desconhecidos por eles mesmos... Ficam tão seguros de estarem transmitindo um amor tão profundo, suas forças se concentram a tal ponto ao redor da mulher de quem se enamoraram, junto dela experimentam sensações tão deliciosas que frequentemente nem percebem que não despertam nada, que não recebem coisa alguma em troca. De todos os egoísmos, esse é o mais lisonjeiro para a mulher que sabe adivinhar essa aparente imobilidade da paixão e as feridas que estão tão profundas que levam muito tempo para surgir à superfície humana. Essa pobre gente, esses anacoretas vivendo no seio da sociedade têm todas as características dos ermitães, o que significa que também podem cair nas mesmas tentações; todavia, é tão comum que sejam enganados, traídos, mal interpretados, que raramente lhes é permitido colher os doces frutos desse amor, que para eles é como uma flor caída do céu.
Perdizes, agosto de 2009

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Soneto da recusa


Se tu me negas a felicidade
O que da vida posso desejar?
Que seria da noite a imensidade
Se não houvesse o brilho do luar?

Do verso casto que meu ser medita
Nasce a tristeza de não perturbar-te;
Maldita hora que minha alma aflita
Estertorou-se e deu-te a maior parte!...

Eu -- rainha das horas mal-dormidas --
Só pude imaginar como seria
Uma noite de amor, curta que fosse...

Mas olho em torno: já desponta o dia.
De resto, as pálpebras umedecidas
Sob o clarão de um sonho muito doce...
Perdizes, agosto de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Aviso

Todos os poemas postados neste sítio estão registrados em nome do autor na Fundação Biblioteca Nacional sob o número do ISBN (International Standard Book Number). É proibida a reprodução ou cópia dos mesmos. O plágio ou a apropriação de obra literária é crime previsto na Lei de Direitos Autorais n. º 9.609/98 e está sujeito aos trâmites legais, com pena prevista e multa.

Soneto


Como o tigre faminto aguarda a presa
Escondido entre ramos na floresta,
Eu aguardo a passagem da Beleza
P’ra alimentar o tempo que me resta.

Mas em minha floresta secular
As plantas têm veneno e os frutos, fel;
Não há aonde se possa caminhar
Sem que haja frio e esteja escuro o céu.

Ainda assim, quando uma rosa nasce
No solo agreste desse chão maldito,
Posso ver em suas pétalas a face

Da esperança que me fez proscrito,
Por sabê-la ilusão de chuva mansa
Que molha a terra mas nunca a descansa.
Perdizes, agosto de 2009

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Inscrição


Pertenceu a estirpe dos sozinhos.
Foi fogo-fátuo nas tormentas densas;
A sua dor, de proporções imensas,
Sempre o guiou no lodo dos caminhos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Prisma


Deixa subir, deixa subir pr’a longe
Tudo que fere nossas almas;
Deixa ficar, deixa ficar e esconde
Todas as facas.

Deixa jorrar o sangue do inimigo
Para adubar a terra;
Deixa chorar, deixa chorar os filhos
E quem se desespera.

Deixa acabar, deixa acabar toda esperança
E todo afeto mútuo;
Deixa nascer, deixa nascer a trama
Do Absoluto.

Deixa que eu morra sem nenhum sinal
De saudade ou lamento;
Deixa que saibam a causa do meu mal
Por um breve momento;

Só não deixa que as asas daquele anjo
Que todo dia eu vejo,
Sejam cobertas pelo manto
De outro desejo.

Só não deixa minha arte atemporal
Ser maculada
Pela forma decrépita e banal
Da verve avara.

Só não deixa o amor - meu companheiro -
E tão fiel,
Conceber o poema derradeiro
Numa taça de fel.

Nem deixe a luz do verso luzidio
Fenecer, expirar
Como fenece e expira um grande rio
Quando encontra o mar.

Só não deixa que eu fale.
Deixa que cale.
Deixa-me inútil dedicar o tempo
Ao labirinto do meu pensamento.
Perdizes, agosto de 2009

sábado, 15 de agosto de 2009

Soneto da criação


Quando os seres do mundo estão cansados
De viver sem refúgio e esperança,
Começam a rogar, em altos brados,
À volta da alegria e da bonança.

No Céu, a multidão de anjos alados
Circunda o Criador, e com voz mansa,
Entoam cânticos desesperados,
Semelhantes ao choro de criança;

O Monarca celeste, muito sábio,
De um gesto toma formidável estrela
E a leva, lentamente, à flor do lábio;

Depois, já arrependido de perdê-la,
Sopra-lhe o casto sopro da bondade.
E manda mais um ser p'ra Humanidade.
Perdizes, 15 de agosto de 2009.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Poema de agosto


Mesmo que o canto esteja torto
E não se enquadre no teu gosto,
Continuará soando absorto
Pois que nasceu num mês de agosto.

Mesmo que a verve, indefinida,
Não toque fundo no teu peito,
Resplenderá, cheia de vida,
Na solidão do insatisfeito.

Mesmo que o tempo nunca faça
Outro destino e outra conduta,
Serei fiel à minha raça
E terei sangue para a luta.

Mesmo que o amor nunca recolha
Minhas lamúrias e meu pranto,
Sempre terei uma outra escolha,
Mesmo que seja o desencanto.

Mesmo que saibas, ó querida,
Que o meu amor nunca perece,
Já não terás a minha vida
E nem tampouco a minha prece.
Perdizes, agosto de 2009

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O homem construído


Defronte à minha porta estão a construir
Um prédio enorme.
Observo a massa de concreto e os tijolos.
Nada os dissolve.

Chega a chuva e chuvisca a construção
Com pingos largos.
O trabalho de um dia foi-se, foi-se em vão...
Está em pedaços.

Amanhã, quando virem os estragos,
Construirão de novo.
O prédio se erguerá sem embaraços.
E possuirá um rosto.

Mas vem o temporal fazer visita
E embebedar as plantas;
Rega-as quando medita.
Depois o pó das ferramentas ele arranca.

A máquina mistura areia e cimento
Com o suor de quem lhe serve;
Os pássaros se espantam: dela o movimento
Mais parece um vulcão que ferve.

De manhãzinha, inicia-se a labuta:
Sons estranhos circulam pelo pátio;
A orquestra bate-estaca soa funda
No silêncio sonífero do sábado.

Quando penso que a obra se prepara
Para almoçar descanso de uma hora,
O vento traz uma batida magra,
Sinal que a ferramenta inda tem força.

Dois jovens, como que magnetizados
Pela força metálica da orquestra,
Engolem poeira e expelem cacos
Da construção deles moléstia.

Da janela eu os vejo: um é magro e moreno;
O outro, pouco mais velho.
O primeiro se esfalfa com o cimento;
O outro, com o martelo.

Descansam aos domingos. A obra fica só.
O que fazem no dia de descanso?
Decerto, limpos do suor,
Encharcam-se com vinho. Ou molham-se de pranto.

Materiais de construção: pirâmides
De areia, montanhas de brita;
A formão, ferramenta em seus trâmites,
Aplaina a massa e na parede a espirra.

A pá e o aprumo, as peças de madeira,
A enxada, a picareta, a linha mestra,
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta,
Todos os dias que o trabalho adestra;

Na noite do silêncio merecido,
É-me triste observar esse contorno informe,
Abandonada, como a um proscrito
Que se perdeu na treva e nunca teve nome.

A construção é o ato, nunca é o fim.
O fim da construção é abstrato.
A obra continua, mesmo se
O temporal seguir-lhe o rastro.
Perdizes, agosto de 2009

segunda-feira, 3 de agosto de 2009


O que de amor buscamos, mal o sabemos. Paga-se muito pela dúvida. Ama-se a ilusão, quer-se a criatura amada como um espelho aonde só se lhe reflita o encanto. Qualquer espelho pode ser quebrado; qualquer encantamento, diluído. Poderia o viajante do deserto se deparar com um oásis tão belo quanto a imagem de Amor? Poderia o sol nascer tão fulgurante se não houvesse as trevas da noite e a solidão da lua? Um monge habita aspérrima caverna. Seu coração, por mais privado que esteja do convívio humano, ainda quer amar. Sente a necessidade de doação à divindade de sua crença ou à criatura que deixara no lar de sua infância. Aquela é idolatrada por multidões; esta, por uma única alma. Mas o fervor dessa crença é a seiva que ainda lhe permite continuar.
Perdizes, julho de 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Soneto de bênção


Abençoada a lua, o céu e as estrelas,
E quem os fez também será abençoado;
Abençoada a vargem de onde nascem as belas
Rosas do campo, as quais meu tédio tem regado.

Abençoado o verde desses cursos d’água,
Aonde as lavadeiras cantam de manhã
Canções antigas de volúpia, amor e mágoa,
Tendo a aragem por mãe e a brisa por irmã.

Abençoado o aroma sútil do incenso;
Abençoada a vista esplêndida do vale;
Abençoada a chuva, o orvalho, a tempestade;

Abençoada a voz que o meu amor imenso
Encoraja a cantar, mesmo que inda se cale.
Abençoada a flor de tua castidade.
Perdizes, julho de 2009

terça-feira, 28 de julho de 2009

Conversa de pares


Meu Deus, se não tivesses
Ouvido tantas preces
E a todas ignorado,
Eu saberia o quanto
É aconchegante o manto
Que tu me tens negado.

Senhor dos que têm medo,
Qual é o teu segredo,
Qual é tua memória?!
Fizeste-me avesso
À ternura, ao apreço
E à minha própria história...

Abençoados aqueles
De sentimentos reles
Que vivem como gado;
A tua mão os alcança,
E vivem na abastança
Num altar consagrado.

Minha estirpe é mais rara:
Dela homem algum lograra
Encontrar-te, Senhor;
Mesmo assim te buscamos -
No mar, no céu, nos ramos –
Até mesmo no amor...

O seio em que mamei
Era digno de um rei.
Meu leito enternecia...
Na montanha o castelo
Era a imagem do Belo
Esplendor que havia.

Fui crescendo, Meu Pai,
Como o tigre que sai
À procura da presa;
Saciei minha sede
No calor de uma rede
Onde mora a Beleza...

Quanto mais eu crescia
A pretensa harmonia
Que me embalava ao colo,
Foi-se evanescendo
Qual o baque tremendo
De um gigante no solo.

A família dos astros
Apagava-me os rastros
Quando a noite chegava;
Eu subia ao vulcão
E pegava na mão
Um resquício de lava...

O calor era tal
Que o meu corpo mortal
Protestava em escaras;
Aquecido de idéias
(mesmo as outras, tão velhas)
Tinha ânsias avaras.

Não pudera, outrossim,
Compreender o fim
De um dia estar morto.
O defunto que sou
Quer alçar outro vôo,
Quer viver outro aborto...

Senhor dos desgraçados,
Criador dos maus fados,
Meu tirano falaz:
O tempo que me negas
Eu o gasto em refregas
Inimigas da Paz...

Como um mendigo atroz
Eu profiro sem voz
As mais altas blasfêmias;
Libertino das ânsias,
Ainda sinto as fragrâncias,
E o calor de tuas fêmeas.

Semelhante ao teu Filho
(aquele outro andarilho)
Eu padeço sozinho;
Só não tenho uma cruz
Ou uma auréola de luz
Que me acenda o caminho.

Também li o Evangelho –
Mas agora estou velho –
Para mundos melhores;
Conheci que o meu Deus
É o deus dos ateus
E de todas as dores.

Outros deuses também
Me vieram do Além,
Mas estavam doentes;
Tinham perdido a guerra
Exilados na terra
De onde brotam serpentes.

Até mesmo um poeta
Com a fronte insurreta
E as vestes surradas,
Estendeu-me uma taça
Em que a fria desgraça
Explodia em golfadas.

Reneguei a bebida
Como renego a vida
E esse eterno esperar;
Senhor que me consome,
Eu não quero o teu nome.
Quero a vista do mar.

Sou apenas mendigo
À procura do abrigo
Que tu me possas dar;
Já cobraste o aluguel
Do teu servo fiel?
Nada tenho a pagar...

Sou apenas um triste.
Minha tristeza existe
E de mim toma conta;
Jeová dos judeus,
Os meus versos são teus
Como minha é tua afronta...

Perco a respiração
Ao saber que é em vão
Minha prece de louco;
Nem conquanto me tenha
Essa prece roufenha
Que diz nada ou tão pouco.

Só desejo a sorte
De deitar-me com a Morte
E cobri-la de espanto...
Senhor a quem profano:
Sou apenas humano.
Ouve, ouve o meu canto.

Perdizes, julho de 2009

Improviso filial


Irmãos de outras batalhas, aprendemos tanto -
a observar da vida a placidez e o encanto -
quanto a compreender, silenciosamente,
que a escuridão habita em nossa mente;

Mas sabemos também - arautos do futuro -
a respirar na distância oxigênio puro,
como os astros hialinos que moram no espaço,
e sabem o valor da irmandade o laço.
Perdizes, julho de 2009

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Soneto


A vida do Poeta é dura e triste:
Não encontra perfume nem nas flores;
O seu jardim é um jardim de dores
Onde a cor da esperança não existe.

Mas o Poeta, um dia, a caminhar
Pelo jardim onde só há tristeza,
Vislumbrou na distância o belo Altar
Purificado pela Natureza.

Caiu de joelhos. Pôs-se a orar atento.
No fatal estertor do sentimento
Sentiu as lágrimas na fronte enxuta;

Nas lembranças felizes fez-se imerso.
Riscou na terra o derradeiro verso
E seguiu novamente para a luta.
Perdizes, junho de 2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Soneto dela

Pele morena, tímido o olhar,
Sorriso meigo, baixa estatura,
Forma divina em humana criatura,
Vinda do céu para na terra amar.

Estrela incandescente que no mar
Caiu para tomar outra figura;
Ao firmamento um dia irás voltar,
Quando o Amor te conceber mais pura.

É impossível, eu sei, tomar-te conta,
Ao Criador pareceria afronta -
E eu não mereço Dele tal presente;

Mas, ah! Serei perdoado - e se o não for –
Terei a redenção do teu amor...
Enfim liberto num desejo ardente.

Perdizes, junho de 2009

Certeza simples

O rio segue tranqüilo
E deságua noutro rio
Que deságua num maior.

O sentimento se espalha
E se torna desvario
Quando misturado à dor...

A prece do penitente
É a medida do quanto
Se acredita apetecer.

A vida tece a armadilha
Como tecedeira o manto
Inefável do prazer...

O mar precisa do barco
Para em cores se espraiar
Na vastidão da baía.

Eu só preciso de ti.
Não sou rio nem sou mar:
Sou a prece que te guia.

Perdizes, junho de 2009

Soneto de ventura

Visita a minha campa quando eu for
Buscar num outro mundo a paz eterna;
E se lembrares que eu to tinha amor,
Entra comigo na fria caverna.

Sem mim foste infeliz – agora vais
Tão fatigada... como eu sempre estive.
O teu repouso não virá jamais,
E tu serás fantasma que ainda vive...

Mas por estes caminhos, de mãos dadas,
Como duas crianças devotadas
A um brinquedo alegre que faz bem,

Busquemos juntos da montanha o cume,
E Deus nos possa aspergir perfume
Na inumana expedição do Além.
Perdizes, junho de 2009

sexta-feira, 13 de março de 2009

Abrigo

Flores sem hastes
No céu imenso
Dão-lhe contrastes
E movimento.

Feridas secas
Querem sangrar,
Cobrir com sangue
A terra e o mar.

Os teus desejos -
Senhores ávidos –
São todos ácidos
Essência cáusticos.

A lua agora
Do céu descer
Deseja muito
Acontecer.

Não lhe pediram:
A colocaram
À revelia
Na noite de astros.

O sol é escravo.
Também quisera
Sair do fulcro
Em noite eterna.

Não tens beleza,
Donzela inútil,
Nem interessa
Teu róseo sulco.

Do verme, sim,
Serás repasto.
Nunca se escapa
Desse carrasco.

Quando te fores
Verás o quanto
A natureza
Ignora o pranto.

Então não chores
Dentro da terra.
Tudo que morre
Também desperta.

O despertar
Num outro lado
É como dádiva
A outro carrasco.

Aqui não podes
Seguir teu trilho,
Não há quem roube
A um andarilho

Que nada tem
Mas pensa tê-lo
Anéis hialinos
Entre os cabelos.

Teu ser comigo
Será eterno.
Aqui o abrigo,
Aqui o Inferno.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Retrato de Jey Low

Divinamente bela, e sem o ser:
Não a beleza estática das flores
Que num painel orgânico e sem cores
Renascem velhas para o amanhecer.

Encantadora, mesmo sem querer
Que todos busquem em seu leito ardores.
Cruel, porém, por não poder dizer
Que um anjo vela por seus dissabores.

Fecha os olhos e quer se libertar
E correr e correr e imaginar
Um hospital onde não haja doentes;

Mas ah! Seus olhos já estão se abrindo
Para o dia de agora, um dia lindo
De onde nasce a mais pura das nascentes.

A variação de seus passos de dança (À Jey Low)

Se nós pudéssemos saber o quanto
Perdemos tempo a esperar somente
Que o riso venha e que não venha o pranto
E a rosa cresça sob um sol ardente

Não estaríamos vivendo tanto
A acreditar que a vida, simplesmente,
A nós possa trazer o acalanto
E eternizar o que nossa alma sente;

Se nós pudéssemos do amor medir
O muito pertencido a outrem amar,
As respostas viriam sem perguntas;

Pois nos olhos nos brota a cor do mar
E os lábios se acendem a sorrir
A imensidão de duas almas juntas.

Araxá, 20/01/09, às 23:38

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Cotidiano da noite

O paletó descansa amarrotado
E ao seu lado descansa meu chapéu.
Só a minha tristeza não descansa.

Estou faminto mesmo na abastança.

Na rua, um transeunte me interpela
E me pede cigarros e o isqueiro.
A madrugada fecha os bares cedo.

Meu coração é como uma capela.

Chego em casa e não sei por que aqui vim.
Os meus móveis são novos e eu sou velho.
Na geladeira, a carne já esquecida.

A Morte traz a ilusão do fim.

Espero o dia. A volta da alvorada
Traz a certeza das conquistas fúteis.
Vejo a noite expirar em tons dourados.

Meus sonhos todos são desesperados.

O pássaro está morto na gaiola.
Suas asas muito abertas já não podem
Sobrevoar o espaço da prisão.

A vida escorre, e esse escorrer é vão.

Faço as malas.O sol está chegando.
Morreram as sombras no teatro azul.
Espero a hora certa da viagem.

O meu destino é como um quadro nu.

Araxá, em 2009.

A um poeta morto

Vejo sinais de pranto nas estátuas...

O Escolhido

Se acaso estes versos desiguais
Se perdem na inconstância da razão,
É que os escreve a força da emoção
E os acentua em sangue - nada mais.

Guerra é preciso para que haja paz,
Amor potente, para a ilusão;
Para existir, saber que tudo é vão.
Para escrever é necessário mais.

Talvez, leitor, o brilho dessa verve
Pareça extasiar-te como o vinho
Guardado há muito tempo extasia.

Mas saiba que ao poeta que aqui serve
Só é preciso a dor de estar sozinho
Para que a lira mostre a melodia.

Araxá, em 2009.
Estou cansado, é verdade...
Quero ter sono e dormir
Para poder prosseguir
E nunca sentir saudade

Do sono brando que não tive
Quando podia descansar.
A vida é o drástico declive
Do Sonho arremessado no ar.

Tenho fé no que transcende
A minha Alma decepada.
Existi como um duende
À procura de uma fada.

Perdi o bilhete de passagem
Que possuía para a vida...
Não desisti, porém, da viagem:
Só me cansei desta guarida.

Existir é esperar a morte certa.
O homem que a espera enfim desperta
E vê que não viveu, pois esperava...

De tudo que fiz na vida
Dispendi muito trabalho.
Levei tudo de vencida
E esta batalha aguerrida
Tornou-me um homem falho.

As luzes que se apagam
Não mais se acenderão.
Vagam com elas despojos
Filhos da Escuridão.

Basta amar quem nos ama?
Não há amor entre feras.
O Amor sempre reclama
Duas mil primaveras.

Estou cansado, é verdade...
Quero ter sono e dormir
no alvo seio do devir.

O Futuro é a minha Divindade.

Araxá, em 2009.

O repouso da Alma

Quando o Outono anuncia a sua chegada
E a natureza pálida esmorece
E chora a última folha desfolhada
E o vento frio espalha a fria prece

A Vida tece a teia e a teia tece
Mais uma vítima a ser devorada,
E que apesar de insciente não padece
A sina de viver abandonada.

Nas torres das igrejas as corujas
Se escondem dessas alvoradas sujas
E o sino dobra aos mortos que estão bem;

Vejo-me preso numa teia enorme.
Enquanto o Outono chega, a Alma dorme
Embalada no seio do Além.

Araxá, em 2009.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Desejo

Eu quero um poema
Distante de tudo:
Da mágoa passada,
Do encanto desnudo.

Eu quero um amor
Que venha no vento:
Alheio à tristeza
E ao meu pensamento.

Eu quero o teu nome
Em minha bandeira:
Vermelho de sangue
Da face guerreira.

Eu quero outro céu -
Azul não precisa;
Mas quero na face
O leve da brisa.

Eu quero o longínquo
Das tardes de infância:
O banho à espera
E a mãe à distância.

Eu quero de volta
A fé inaudita:
Sou velho asceta
Que ainda medita.

Eu quero o teu riso
Sorrindo ao meu lado:
Não pude sonhar
Estando acordado.

Eu quero a lembrança
De ter conhecido
Os passos de dança
De um anjo caído.

Não posso o que quero
Por mais que deseje:
Mas quero que um dia
Teu lábio me beije.

Araxá, em 2009.

O futuro sonhado

Eu queria um soneto que dissesse
A forma com que vejo o teu semblante.
Mas não o posso escrever, e se o pudesse
Nele haveria lágrimas de amante.

Eu queria saber de qualquer prece
Que soasse em meu peito, consoante
Àquilo que me alegra e me entristece:
O meu amor, infenso mas brilhante.

Mas não há versos nem pode haver cantos
Que exprimam fielmente o teu sorriso
Ou saibam precisar o olhar seguro;

Porque eu ainda ignoro os teus encantos,
Mas posso imaginar o Paraíso
Recôndito nas asas do Futuro.

Araxá, em 2009

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O corcel

Há em mim um corcel que nunca corre
Pelos prados distantes, muito verdes.
Talvez desdenhe de sua própria sorte:
Não possuir esperança nem prazeres.

Direis consigo: “A um animal tão belo
Os deuses deram a sorte da ignorância:
Não pode imaginar-se em desespero
E muito menos longe da esperança...”

No desperdício do marasmo inculto
Segue o corcel com passos de embaraços.
Sente as patas letárgicas e o abrupto
Equivocado som dos próprios cascos.

O bando o chama para caminhar
Por sobre os cumes e por sobre os morros,
Mas o corcel prefere aqui ficar
Na companhia dos fatais desgostos.

De vez em quando a brisa sopra ao longe,
Em meio aos capinzais,
E ele vê muitas linhas de horizonte
Que não virão jamais.

Ainda se viesse um aroma tal
Que se lhe atenuasse o olfato duro,
Sentiria esse aroma muito mal
Pois ao olfato ainda falta apuro.

Ainda se lhe houvesse um dia bom
Daqueles que não podem ser perdidos,
Veria o vulto e ouviria o som
Dos próprios pesadelos mal dormidos.

Agora está faminto e está sedento
Mas a fonte está suja e a relva ruim
Para um corcel sem muito movimento
Que começa a viagem pelo fim.

Não há, porém, quem lhe arrebate a sorte
De viver muito solto, muito livre,
De cavalgar sem medo até a morte
Que dos corcéis é qual como um declive.

Há em mim um corcel que nunca corre
Pelos sonhos de outrora, muito azuis,
Mas ainda caminha com o porte
Dos corcéis conduzidos pela Luz.

Araxá, em 2009.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Considerações do tédio

Tente ouvir o barulho do vento
Numa noite sem vento.
Tente amar a mulher que não ama
e a si mesmo se engana.
Tente a morte, amiúde.
Um morto não se ilude
com este mundo belo.

O que ficou no caminho

Tristis eris si solus eris
OVÍDIO

Caminha cabisbaixo entre resquícios
De uma vida esgotada em artifícios
Que o arrastam, lentamente, à indigência;
Está sozinho na árdua atividade
De procurar no mundo a liberdade
E traduzir na Arte a própria Essência.

Segue de olhos fechados, meditando
À nulidade trágica, ao desmando
Dos desejos do homem, incoerentes;
Pensa na concepção de um paralelo,
Uma terra divina, um anelo
Onde possa plantar suas sementes.

Ah! Como desejara estar contente
E passar pela vida inutilmente
Numa existência quase religiosa...
Mas o Poeta vê o invisível
E retorna, senhor de um mundo incrível
Onde a lua é mais triste e nebulosa...

Carrega a sina de um destino aziago:
Procurar no humano gesto o afago
Que lhe complete a alma e o sentido;
E, numa tarde harmoniosa , crer -
Viver é o exercício de esquecer
O Sonho que jamais será esquecido.
Araxá, fevereiro de 2007.

Epitáfio

Pertencia aos que sofrem e estão sozinhos.
Foi fogo-fátuo nas tormentas densas.
A sua dor, de proporções imensas,
Acompanhava-o, fiel, em seus caminhos...

Fragmento de um discurso eremita

_ O Homem não nos diz respeito!
Apartemo-nos da Raça!
Descansa o asceta no leito
Purificado da Graça!
Na conquista do Direito

Avancemos rumo ao Trono!
Libertemos a Esperança
Da atonia e do sono!
Da tempestade à bonança
Caminharemos sem dono!
Araxá, março de 2007

Declaração

Amo-te de maneira efervescente
Num sentimento pleno e palpitante
A cintilar no peito, extenuante
Como a força que brota da semente.

Corre o Destino à ânsia da corrente,
Que faz nascer na alma o exultante
Desejo de cobrir, num beijo ardente,
A beleza maior que é o teu semblante.

Morrerá a ternura e a esperança...
Pois habita em teu seio a indiferença -
Um carrasco com sede de matança.

E se a sorte incutir-me tal sentença,
Não morrerá em mim tua lembrança,
Apesar de arraigada na descrença.
Araxá, novembro de 2006

A idade da razão

A idade da razão

“Saiba morrer o que viver não soube”

Bocage

Nada espero, pois não possuo.

Se possuí tesouros

Não os soube guardar.

Idos todos esses anos,

Muitos desejos

Que ardem na alma no corpo

E no vento

Curvaram-se, abstinentes

À natureza das coisas.

Como descobrir a aurora

Herdada pelo atavismo

Milenar de minha estirpe?...

Neste mundo incendiado

A serenidade é o ápice

Mas tudo é retardamento.

Dormi sem sono

No exercício de minha altura...

Não soube lapidar diamantes

Nem garimpar pedrarias.

Mesmo se as encontrasse,

Ficariam guardadas

Num paletó sem uso

E sem ressentimentos.

Só pude criar.

O que é a Arte sem

Tolher de movimentos?

Ah... meu canto...

A minha razão e minha necessidade

Meu canto é tudo o que eu não pude.

É chegada a hora!

Caminhar no indizível...

Sabe-se lá se encontro

Frutas maduras nas árvores,

Com aquele cheiro de planta regada

Pelas mãos de Deus.

Ou o que sobrou Dele.

Araxá, janeiro de 2007.

Os pronomes irmãos

Por que me envolvo contigo?!
Teus olhos são o meu abrigo
onde repouso os meus, tão tristes.
Estou vivendo porque existes.

Está chovendo muito aqui,
tu és o sol que me ilumina,
e os dias lindos que vivi
foram ao teu lado, minha sina.

O mundo é paz se estás junto de mim,
sou um guerreiro que não mais quer guerra;
A nossa história está longe do fim
e tu és o que mais quero aqui na terra.

Se o meu destino está ligado ao teu,
estou feliz, pois isso é estar no céu...
A cada vez que penso, tu és minha,
e o meu destino ao teu lado caminha.

Esta declaração será meu hino
e o cantarei em êxtases de sonho...
Tu me fizeste homem - era menino -
e agora o amor nestes meus versos ponho.

Verás um dia, quando a Luz se for
para a distância do fatal desgosto,
o meu semblante rude, a minha dor
beijar de leve o teu moreno rosto...

Desejos, desejos, milhões de desejos!...
Procuro e não encontro o calor dos teus beijos...
Explode o meu peito que muito te quer
aqui ao meu lado, meu anjo-mulher!

Em 2008.