"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O homem construído


Defronte à minha porta estão a construir
Um prédio enorme.
Observo a massa de concreto e os tijolos.
Nada os dissolve.

Chega a chuva e chuvisca a construção
Com pingos largos.
O trabalho de um dia foi-se, foi-se em vão...
Está em pedaços.

Amanhã, quando virem os estragos,
Construirão de novo.
O prédio se erguerá sem embaraços.
E possuirá um rosto.

Mas vem o temporal fazer visita
E embebedar as plantas;
Rega-as quando medita.
Depois o pó das ferramentas ele arranca.

A máquina mistura areia e cimento
Com o suor de quem lhe serve;
Os pássaros se espantam: dela o movimento
Mais parece um vulcão que ferve.

De manhãzinha, inicia-se a labuta:
Sons estranhos circulam pelo pátio;
A orquestra bate-estaca soa funda
No silêncio sonífero do sábado.

Quando penso que a obra se prepara
Para almoçar descanso de uma hora,
O vento traz uma batida magra,
Sinal que a ferramenta inda tem força.

Dois jovens, como que magnetizados
Pela força metálica da orquestra,
Engolem poeira e expelem cacos
Da construção deles moléstia.

Da janela eu os vejo: um é magro e moreno;
O outro, pouco mais velho.
O primeiro se esfalfa com o cimento;
O outro, com o martelo.

Descansam aos domingos. A obra fica só.
O que fazem no dia de descanso?
Decerto, limpos do suor,
Encharcam-se com vinho. Ou molham-se de pranto.

Materiais de construção: pirâmides
De areia, montanhas de brita;
A formão, ferramenta em seus trâmites,
Aplaina a massa e na parede a espirra.

A pá e o aprumo, as peças de madeira,
A enxada, a picareta, a linha mestra,
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta,
Todos os dias que o trabalho adestra;

Na noite do silêncio merecido,
É-me triste observar esse contorno informe,
Abandonada, como a um proscrito
Que se perdeu na treva e nunca teve nome.

A construção é o ato, nunca é o fim.
O fim da construção é abstrato.
A obra continua, mesmo se
O temporal seguir-lhe o rastro.
Perdizes, agosto de 2009

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