"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 28 de julho de 2009

Conversa de pares


Meu Deus, se não tivesses
Ouvido tantas preces
E a todas ignorado,
Eu saberia o quanto
É aconchegante o manto
Que tu me tens negado.

Senhor dos que têm medo,
Qual é o teu segredo,
Qual é tua memória?!
Fizeste-me avesso
À ternura, ao apreço
E à minha própria história...

Abençoados aqueles
De sentimentos reles
Que vivem como gado;
A tua mão os alcança,
E vivem na abastança
Num altar consagrado.

Minha estirpe é mais rara:
Dela homem algum lograra
Encontrar-te, Senhor;
Mesmo assim te buscamos -
No mar, no céu, nos ramos –
Até mesmo no amor...

O seio em que mamei
Era digno de um rei.
Meu leito enternecia...
Na montanha o castelo
Era a imagem do Belo
Esplendor que havia.

Fui crescendo, Meu Pai,
Como o tigre que sai
À procura da presa;
Saciei minha sede
No calor de uma rede
Onde mora a Beleza...

Quanto mais eu crescia
A pretensa harmonia
Que me embalava ao colo,
Foi-se evanescendo
Qual o baque tremendo
De um gigante no solo.

A família dos astros
Apagava-me os rastros
Quando a noite chegava;
Eu subia ao vulcão
E pegava na mão
Um resquício de lava...

O calor era tal
Que o meu corpo mortal
Protestava em escaras;
Aquecido de idéias
(mesmo as outras, tão velhas)
Tinha ânsias avaras.

Não pudera, outrossim,
Compreender o fim
De um dia estar morto.
O defunto que sou
Quer alçar outro vôo,
Quer viver outro aborto...

Senhor dos desgraçados,
Criador dos maus fados,
Meu tirano falaz:
O tempo que me negas
Eu o gasto em refregas
Inimigas da Paz...

Como um mendigo atroz
Eu profiro sem voz
As mais altas blasfêmias;
Libertino das ânsias,
Ainda sinto as fragrâncias,
E o calor de tuas fêmeas.

Semelhante ao teu Filho
(aquele outro andarilho)
Eu padeço sozinho;
Só não tenho uma cruz
Ou uma auréola de luz
Que me acenda o caminho.

Também li o Evangelho –
Mas agora estou velho –
Para mundos melhores;
Conheci que o meu Deus
É o deus dos ateus
E de todas as dores.

Outros deuses também
Me vieram do Além,
Mas estavam doentes;
Tinham perdido a guerra
Exilados na terra
De onde brotam serpentes.

Até mesmo um poeta
Com a fronte insurreta
E as vestes surradas,
Estendeu-me uma taça
Em que a fria desgraça
Explodia em golfadas.

Reneguei a bebida
Como renego a vida
E esse eterno esperar;
Senhor que me consome,
Eu não quero o teu nome.
Quero a vista do mar.

Sou apenas mendigo
À procura do abrigo
Que tu me possas dar;
Já cobraste o aluguel
Do teu servo fiel?
Nada tenho a pagar...

Sou apenas um triste.
Minha tristeza existe
E de mim toma conta;
Jeová dos judeus,
Os meus versos são teus
Como minha é tua afronta...

Perco a respiração
Ao saber que é em vão
Minha prece de louco;
Nem conquanto me tenha
Essa prece roufenha
Que diz nada ou tão pouco.

Só desejo a sorte
De deitar-me com a Morte
E cobri-la de espanto...
Senhor a quem profano:
Sou apenas humano.
Ouve, ouve o meu canto.

Perdizes, julho de 2009

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