"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Prisma


Deixa subir, deixa subir pr’a longe
Tudo que fere nossas almas;
Deixa ficar, deixa ficar e esconde
Todas as facas.

Deixa jorrar o sangue do inimigo
Para adubar a terra;
Deixa chorar, deixa chorar os filhos
E quem se desespera.

Deixa acabar, deixa acabar toda esperança
E todo afeto mútuo;
Deixa nascer, deixa nascer a trama
Do Absoluto.

Deixa que eu morra sem nenhum sinal
De saudade ou lamento;
Deixa que saibam a causa do meu mal
Por um breve momento;

Só não deixa que as asas daquele anjo
Que todo dia eu vejo,
Sejam cobertas pelo manto
De outro desejo.

Só não deixa minha arte atemporal
Ser maculada
Pela forma decrépita e banal
Da verve avara.

Só não deixa o amor - meu companheiro -
E tão fiel,
Conceber o poema derradeiro
Numa taça de fel.

Nem deixe a luz do verso luzidio
Fenecer, expirar
Como fenece e expira um grande rio
Quando encontra o mar.

Só não deixa que eu fale.
Deixa que cale.
Deixa-me inútil dedicar o tempo
Ao labirinto do meu pensamento.
Perdizes, agosto de 2009

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