"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A janela do quarto

A janela vidro e aço
Abre o mundo mas divide
Duas formas alternadas:
O ver-se com olhos mais simples,
Na separação de outro espaço -
E ainda outro que os prescinde.

A altura da janela
Não dá vertigem nem medo,
Mas esconde na esquadria
Súbitos segredos.

Clara a cor, já desbotada
Pelo tempo os malefícios
A janela envidraçada
Dá de frente para o Cristo.

Tal estátua - não de gente –
Tem os braços sempre abertos;
No disforme do concreto,
Vem abrir fechar secretos:
Expande-se, logo o sol
Clareia o branco dos braços
Numa estatura de cal
Qual gigante dos espaços.
Alinha-se, independente,
Contra o verde ao seu redor;
Tal estátua – não de gente –
Mas parece ter suor.

O que constroem, da janela,
Deixa ver incongruências
Da falta de arrimo, poste
Sem dividir dependências.

A luz artificial
Que brota pela janela
Deixa ver o claro elétrico –
Um cego às apalpadelas.

Diversidade de esquadros
Outras janelas vizinhas
No fumê de seus matizes
Reencontram-se, restritas
Ao ângulo fantasiado,
Ângulo morto, invisível
De um lado em outro lado
Só se vê possíveis trincos.

Dessa altura momentânea
Que é estar sobrepesando
O vazio que há embaixo
Machucado subcutâneo,
Mede à força com arrasto
O sentir-se nas alturas –
Palmo a palmo, braço a braço
Exato de arquitetura.

Nessa divisão real
Do exterior com o fechado
Principia outra medida
Da janela até o asfalto.

Três andares, três colunas,
Antitéticas ao três:
As colunas retilíneas
Muita brita e robustez,
Descascam, se no horizonte
A abrangência está completa;
Alheias a qualquer homem
De inteligência arquiteta,
Tais colunas necessitam
Da metálica estrutura
Que delimita os contornos
De uma a outra coluna.

Da janela do meu quarto
Dividi outros espaços:
Luz contínua que brota
Refestela-se, exata;
Dentre todos os quadrados
O maior é sempre másculo:
Qual o homem sem medidas
Que ilimita o próprio estado.
Perdizes, novembro de 2009

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei esse aqui em especial...