"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O corpo do louco


O corpo atávico do louco
É meu objeto de poesia:
Se co’ ele escrevo muito ou pouco
O que me vale é o arroubo
Da sua forma retilínea.

Não é um corpo como os outros,
É mais orgânico e sadio;
Quando se molha, vai, aos poucos,
Alimentando-se do rio.

Não é a vida que o pranteia,
Tampouco o sol que no céu arde;
Nem mesmo a aurora prazenteira
Aclara o escuro de sua tarde.

Não é desejo o que possui,
Nem é veneno o que o mata;
É mais aborto do que luz,
É mais diamante do que prata.

Não se aclimata nesse clima
De dias quentes, noites mais.
Quisera tempo de neblina
Com nuvens sujas de cristais.

As roupas - meros artifícios –
Nunca lhe servem com primor.
O corpo vale por seus vícios,
O maior deles é o amor.

Sapatos flácidos, furados,
Sem sola, soltos nos contornos
Dos pés escravos dos sapatos,
Sapatos vítimas dos donos.

Os óculos de impróprio grau,
De lentes densas de miragens,
Dão a ilusão de que faz mal
Deixá-los castos de saudades.

As calças velhas remendadas
Mui companheiras da sujeira
Que habita os trilhos e as estradas
E deixam pó na penteadeira.

Tudo isso, o corpo, quando morto,
Mal saberá por que valia
Os homens trocam o conforto
De andarem nus como o faziam.

O corpo nunca é repasto
Mesmo que a morte dele coma.
O corpo do homem ou do sapo.
A mesma carne, o mesmo aroma.

O louco segue, e não entende
Por que ganhara essa matéria;
Não se debocha de um presente,
Mesmo que seja a própria terra.
Perdizes, setembro de 2009

Nenhum comentário: