"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Oração da auto-penitência

Eu sou a criatura estranha e louca
de passo tímido e existência pouca,
monstro de escuridão e de torpor.
Sou o carrasco dessa nova estética,
mártir tristonho da conduta ascética -
Olhai por mim, olhai por mim, Senhor.

Olhai pelos meus sonhos tão sombrios
que não verão a luz do manto azul;
olhai pelos meus áureos desvarios
e deixai-me sereno e pleno e nu;

Olhai por minhas asas sequiosas
destas imensidades arredias;
Vigiai meu coração - manto de rosas -
de onde brotam celestes harmonias...

Não me disseram, ó Pai dos penitentes,
que as almas superiores são malditas
por viverem pior que os indigentes
nesta terra de dores infinitas;

Só me basta saber que não me findo
como findam as luzes das estrelas
quando o nascente a imensidade vem medindo
numa ânsia de excitar no mar procelas...

Olhai por mim, em tudo e a toda hora,
desde a minha saída até a chegada,
pois minha alma estremece e treme e chora
qual uma criança numa casa abandonada.

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