"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Entrega


Entregou-se totalmente às delícias da mais comovente e profunda das paixões: o amor que se contenta em contemplar e admirar. Foi sacudido por incontáveis desejos reprimidos, nuances de paixão tão vagas e tão profundas, tão arredias e tão avassaladoras que talvez não seja possível encontrar um termo de comparação que as possa explicar. Elas recordam perfumes, lembram nuvens, evocam raios de sol, sugerem sombras... tudo aquilo que na natureza pode brilhar por um momento e então se desvanecer, avivar-se como uma chama derradeira e então morrer, deixando como único rastro as emoções que perduram por longo tempo no fundo do coração. Enquanto uma alma é jovem o bastante para se conceber romântica, sabe ver na mulher mais do que simplesmente uma mulher. A maior felicidade que pode alcançar um homem é amar o suficiente para sentir mais alegria ao tocar uma luva branca, ao roçar de leve uma madeixa macia, ao ouvir uma frase dita casualmente, ao lançar um olhar sem ser observado – do que gozar da posse mais ardente de um amor correspondido.
Os infelizes privados de afeto e que consomem as mais belas horas da juventude em longos trabalhos são os que mais rápido se entregam à ação destruidora de uma paixão. Seus corações são desertos e desconhecidos por eles mesmos... Ficam tão seguros de estarem transmitindo um amor tão profundo, suas forças se concentram a tal ponto ao redor da mulher de quem se enamoraram, junto dela experimentam sensações tão deliciosas que frequentemente nem percebem que não despertam nada, que não recebem coisa alguma em troca. De todos os egoísmos, esse é o mais lisonjeiro para a mulher que sabe adivinhar essa aparente imobilidade da paixão e as feridas que estão tão profundas que levam muito tempo para surgir à superfície humana. Essa pobre gente, esses anacoretas vivendo no seio da sociedade têm todas as características dos ermitães, o que significa que também podem cair nas mesmas tentações; todavia, é tão comum que sejam enganados, traídos, mal interpretados, que raramente lhes é permitido colher os doces frutos desse amor, que para eles é como uma flor caída do céu.
Perdizes, agosto de 2009

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Soneto da recusa


Se tu me negas a felicidade
O que da vida posso desejar?
Que seria da noite a imensidade
Se não houvesse o brilho do luar?

Do verso casto que meu ser medita
Nasce a tristeza de não perturbar-te;
Maldita hora que minha alma aflita
Estertorou-se e deu-te a maior parte!...

Eu -- rainha das horas mal-dormidas --
Só pude imaginar como seria
Uma noite de amor, curta que fosse...

Mas olho em torno: já desponta o dia.
De resto, as pálpebras umedecidas
Sob o clarão de um sonho muito doce...
Perdizes, agosto de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Aviso

Todos os poemas postados neste sítio estão registrados em nome do autor na Fundação Biblioteca Nacional sob o número do ISBN (International Standard Book Number). É proibida a reprodução ou cópia dos mesmos. O plágio ou a apropriação de obra literária é crime previsto na Lei de Direitos Autorais n. º 9.609/98 e está sujeito aos trâmites legais, com pena prevista e multa.

Soneto


Como o tigre faminto aguarda a presa
Escondido entre ramos na floresta,
Eu aguardo a passagem da Beleza
P’ra alimentar o tempo que me resta.

Mas em minha floresta secular
As plantas têm veneno e os frutos, fel;
Não há aonde se possa caminhar
Sem que haja frio e esteja escuro o céu.

Ainda assim, quando uma rosa nasce
No solo agreste desse chão maldito,
Posso ver em suas pétalas a face

Da esperança que me fez proscrito,
Por sabê-la ilusão de chuva mansa
Que molha a terra mas nunca a descansa.
Perdizes, agosto de 2009

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Inscrição


Pertenceu a estirpe dos sozinhos.
Foi fogo-fátuo nas tormentas densas;
A sua dor, de proporções imensas,
Sempre o guiou no lodo dos caminhos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Prisma


Deixa subir, deixa subir pr’a longe
Tudo que fere nossas almas;
Deixa ficar, deixa ficar e esconde
Todas as facas.

Deixa jorrar o sangue do inimigo
Para adubar a terra;
Deixa chorar, deixa chorar os filhos
E quem se desespera.

Deixa acabar, deixa acabar toda esperança
E todo afeto mútuo;
Deixa nascer, deixa nascer a trama
Do Absoluto.

Deixa que eu morra sem nenhum sinal
De saudade ou lamento;
Deixa que saibam a causa do meu mal
Por um breve momento;

Só não deixa que as asas daquele anjo
Que todo dia eu vejo,
Sejam cobertas pelo manto
De outro desejo.

Só não deixa minha arte atemporal
Ser maculada
Pela forma decrépita e banal
Da verve avara.

Só não deixa o amor - meu companheiro -
E tão fiel,
Conceber o poema derradeiro
Numa taça de fel.

Nem deixe a luz do verso luzidio
Fenecer, expirar
Como fenece e expira um grande rio
Quando encontra o mar.

Só não deixa que eu fale.
Deixa que cale.
Deixa-me inútil dedicar o tempo
Ao labirinto do meu pensamento.
Perdizes, agosto de 2009

sábado, 15 de agosto de 2009

Soneto da criação


Quando os seres do mundo estão cansados
De viver sem refúgio e esperança,
Começam a rogar, em altos brados,
À volta da alegria e da bonança.

No Céu, a multidão de anjos alados
Circunda o Criador, e com voz mansa,
Entoam cânticos desesperados,
Semelhantes ao choro de criança;

O Monarca celeste, muito sábio,
De um gesto toma formidável estrela
E a leva, lentamente, à flor do lábio;

Depois, já arrependido de perdê-la,
Sopra-lhe o casto sopro da bondade.
E manda mais um ser p'ra Humanidade.
Perdizes, 15 de agosto de 2009.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Poema de agosto


Mesmo que o canto esteja torto
E não se enquadre no teu gosto,
Continuará soando absorto
Pois que nasceu num mês de agosto.

Mesmo que a verve, indefinida,
Não toque fundo no teu peito,
Resplenderá, cheia de vida,
Na solidão do insatisfeito.

Mesmo que o tempo nunca faça
Outro destino e outra conduta,
Serei fiel à minha raça
E terei sangue para a luta.

Mesmo que o amor nunca recolha
Minhas lamúrias e meu pranto,
Sempre terei uma outra escolha,
Mesmo que seja o desencanto.

Mesmo que saibas, ó querida,
Que o meu amor nunca perece,
Já não terás a minha vida
E nem tampouco a minha prece.
Perdizes, agosto de 2009

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O homem construído


Defronte à minha porta estão a construir
Um prédio enorme.
Observo a massa de concreto e os tijolos.
Nada os dissolve.

Chega a chuva e chuvisca a construção
Com pingos largos.
O trabalho de um dia foi-se, foi-se em vão...
Está em pedaços.

Amanhã, quando virem os estragos,
Construirão de novo.
O prédio se erguerá sem embaraços.
E possuirá um rosto.

Mas vem o temporal fazer visita
E embebedar as plantas;
Rega-as quando medita.
Depois o pó das ferramentas ele arranca.

A máquina mistura areia e cimento
Com o suor de quem lhe serve;
Os pássaros se espantam: dela o movimento
Mais parece um vulcão que ferve.

De manhãzinha, inicia-se a labuta:
Sons estranhos circulam pelo pátio;
A orquestra bate-estaca soa funda
No silêncio sonífero do sábado.

Quando penso que a obra se prepara
Para almoçar descanso de uma hora,
O vento traz uma batida magra,
Sinal que a ferramenta inda tem força.

Dois jovens, como que magnetizados
Pela força metálica da orquestra,
Engolem poeira e expelem cacos
Da construção deles moléstia.

Da janela eu os vejo: um é magro e moreno;
O outro, pouco mais velho.
O primeiro se esfalfa com o cimento;
O outro, com o martelo.

Descansam aos domingos. A obra fica só.
O que fazem no dia de descanso?
Decerto, limpos do suor,
Encharcam-se com vinho. Ou molham-se de pranto.

Materiais de construção: pirâmides
De areia, montanhas de brita;
A formão, ferramenta em seus trâmites,
Aplaina a massa e na parede a espirra.

A pá e o aprumo, as peças de madeira,
A enxada, a picareta, a linha mestra,
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta,
Todos os dias que o trabalho adestra;

Na noite do silêncio merecido,
É-me triste observar esse contorno informe,
Abandonada, como a um proscrito
Que se perdeu na treva e nunca teve nome.

A construção é o ato, nunca é o fim.
O fim da construção é abstrato.
A obra continua, mesmo se
O temporal seguir-lhe o rastro.
Perdizes, agosto de 2009

segunda-feira, 3 de agosto de 2009


O que de amor buscamos, mal o sabemos. Paga-se muito pela dúvida. Ama-se a ilusão, quer-se a criatura amada como um espelho aonde só se lhe reflita o encanto. Qualquer espelho pode ser quebrado; qualquer encantamento, diluído. Poderia o viajante do deserto se deparar com um oásis tão belo quanto a imagem de Amor? Poderia o sol nascer tão fulgurante se não houvesse as trevas da noite e a solidão da lua? Um monge habita aspérrima caverna. Seu coração, por mais privado que esteja do convívio humano, ainda quer amar. Sente a necessidade de doação à divindade de sua crença ou à criatura que deixara no lar de sua infância. Aquela é idolatrada por multidões; esta, por uma única alma. Mas o fervor dessa crença é a seiva que ainda lhe permite continuar.
Perdizes, julho de 2009