"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A bailarina


A Jenny Galdino

A bailarina o véu trespassa
Com gestos fúlgidos de moça:
O que de dança ela mantinha,
O que de mel tinha na boca.

O que de simples fosse a dança
Em pano, sapatilhas novas:
São sapatilhas de criança
De pé alheio a novas provas.

O que de jovem pareceu
Dançar sapatos velhos,
O que da vida pereceu
Andar com passos cegos.

O mundo a bailarina pisa
A dor da dança ela comete:
Na alma, não nos pés,
A bailarina se reflete.

É comovente essa linguagem,
É nebuloso aprendizado:
A dança nela é tinta-guache
Em quadro novo, inacabado.

Outras platéias quer agora,
Outros teatros redourados
A bailarina rememora
Vernizes visuais e vários.

Agora dança em outra órbita
Em outro estágio se mantém:
Acaricia a luz sonora
E faz o ritmo de refém.

Um passo... dois... três passos grandes
No palco estranho destas formas;
Um sonho novo que se expande
Sem normas.

Em tudo fica um céu aberto
Quando ela dança, lenta câmera:
O corpo claro, circunspecto,
Cortando o vento feito lâmina.

O giro entanto só é perfeito
Se há alguém a acompanhá-lo:
Dois corpos livres, desespero
De abandonar o ser estático.

Nos vãos do solo o rodopio
Dos passos castos, vasto embalo:
Um gesto franco no delírio,
Estilo só de abandonado.

Talvez o ritmo da passista
Explique mais do que o silêncio,
Penumbra de paisagem prisca,
Afago, vôo, contentamento.

Talvez não saiba por que dança,
Por que aprendera o andar das plumas:
Só quer o encontro de outros passos,
Para poder dançar na chuva.
Araxá, maio de 2010

Um comentário:

Jey Cassidy disse...

que bom que minhas velhas sapatilhas ainda podem dançar na chuva.
=D