"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Abertura


Escrevi este livro necessário
Para guardar as cinzas do Passado.
Se acaso o verso parecer forçado
E por de mais prosaico e precário

É que o fiz no escuro, quando a noite
Torna-se imensa como um precipício.
Ele contém a dor da vida, o açoite
Das almas que se entregam ao sacrifício.

Sou moço ainda. A juventude pulsa
Com a força do veneno mais letal;
A água que bebo só me traz repulsa,
O alimento que como me faz mal.

Mero artifício de Arte inacabada,
O meu livro é composto, essencialmente,
Dos matizes sangrentos da alvorada
E das tristezas vãs de toda a gente.

Assim, quando o abrir, leitor funesto,
(Todo leitor tem amizade à morte)
Verá que concebi meu manifesto
À revelia de mostrar-me forte.

Das imagens etéreas, do crepúsculo,
Da Lua amiga dos que não têm sono,
Do ancestral espasmo de um músculo,
Do Amor que sinto – meu senhor e dono:

Recebam agora as homenagens frias
Da alma perdida que só quer descanso.
O meu livro é a síntese dos dias
Nos quais meu coração era um demônio manso.
Perdizes, novembro de 2009

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