"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ocaso


O sol vem coar as lágrimas
Sem as secar.
Nem poderia fazê-lo:
Há muita água pras enchentes.

A lua é amiga dos insones
Que trocam o sono pela abstinência de acordar.
Nunca serás amante, lua dos amantes.
Proibiram os astros de amar.
O amor é só dos homens.

Amei como todos amam.
Amei ainda mais.
Mas não fui amado como necessitava.
Será o amor necessário?

Ensinaram o céu a não pedir favores.
Ensinei pouco, aprendi raro.
Ensinamentos e decepções
Cobrem o céu dos homens.

Muita vez, quando observava as estátuas
Também chamadas de seres,
Tive inveja dos mármores
E das estalactites.

Mundo mineral, sou teu apóstolo.
Ensina-me o rumorejar da floresta
e o silvo das montanhas.
Rochas há que sonegam
A umidade das nuvens.

Se é tão sinuosa a estrada,
Por que a devo endireitar?!
A ferramenta cai do gesto,
Múltiplo de prata.

Só há razão se houver debilidade,
Só há tristeza se amor feroz
Morder-te o pescoço.

Nunca mais.

Apagão


Apagão
As luzes da cidade se apagaram
Mal a noite veio.
Nem estrelas nem postes
Iluminam a cidade.

Os transeuntes sumiram-se na bruma
Ainda mais escura.
Paixões de momento esvaziam
O ritmo cadente das almas.

Há carros, buzinas e faróis
Dando vida à estrada e às ruas.
Existência, asfalto e solidão.

Deus caminha com pés de rinoceronte.
Os homens são submissos,
O trabalho verga os ombros de quem o faz.

Sem vitrola e sem versos, o poeta quer vinho.
Sangue e espasmo e morte, talvez.
Lírios no campo observam mulheres
A cantar.

Retinir de auréolas no céu,
Abusões contra as sagradas meditações
Dos deuses.

Há tanta dor sem remédio
Que os outros remédios pouco valem.

Do amor a nascente água jorra,
Fonte pura sem mácula desce a montanha
E vira esgoto sem haver matado a sede
De quem ama.

Que criação é o amor!
Doa-se o arado e morre-se de fome.
Nem sementes nem terra -
Só arbustos retorcidos.

Esperança dos que amam
O que n’alma padece
Reflete mágoas
Inextinguíveis.

De todas as mágoas pertenço.
Perdizes, setembro de 2009

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O corpo do louco


O corpo atávico do louco
É meu objeto de poesia:
Se co’ ele escrevo muito ou pouco
O que me vale é o arroubo
Da sua forma retilínea.

Não é um corpo como os outros,
É mais orgânico e sadio;
Quando se molha, vai, aos poucos,
Alimentando-se do rio.

Não é a vida que o pranteia,
Tampouco o sol que no céu arde;
Nem mesmo a aurora prazenteira
Aclara o escuro de sua tarde.

Não é desejo o que possui,
Nem é veneno o que o mata;
É mais aborto do que luz,
É mais diamante do que prata.

Não se aclimata nesse clima
De dias quentes, noites mais.
Quisera tempo de neblina
Com nuvens sujas de cristais.

As roupas - meros artifícios –
Nunca lhe servem com primor.
O corpo vale por seus vícios,
O maior deles é o amor.

Sapatos flácidos, furados,
Sem sola, soltos nos contornos
Dos pés escravos dos sapatos,
Sapatos vítimas dos donos.

Os óculos de impróprio grau,
De lentes densas de miragens,
Dão a ilusão de que faz mal
Deixá-los castos de saudades.

As calças velhas remendadas
Mui companheiras da sujeira
Que habita os trilhos e as estradas
E deixam pó na penteadeira.

Tudo isso, o corpo, quando morto,
Mal saberá por que valia
Os homens trocam o conforto
De andarem nus como o faziam.

O corpo nunca é repasto
Mesmo que a morte dele coma.
O corpo do homem ou do sapo.
A mesma carne, o mesmo aroma.

O louco segue, e não entende
Por que ganhara essa matéria;
Não se debocha de um presente,
Mesmo que seja a própria terra.
Perdizes, setembro de 2009

Soneto do amor alheio


É necessário amar a juventude
Mesmo nas horas em que se deseja
Fugir pr’a imensurável altitude
Aonde ninguém é triste nem peleja.

É necessária a força da virtude
E a coragem de sermos realmente
Os que ultrapassam a vicissitude
E espalham flores nesta terra ardente.

É necessário amar, como quem ama
E tem no amor a inextinguível chama
Que clareia o percurso não trilhado.

É necessário amar e ser amado.
Pena que o Amor, alheio a qualquer verso,
Faz-se surdo enquanto amo e sou diverso.
Perdizes, setembro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A morte da Musa


Há segredos escuros em tu’alma,
Ó Musa do celeste firmamento.
Por trás da névoa de tua face calma
Há uma tempestade de tormento.

Deixaste o desespero vir no vento
Quando o pranto cobriu-te a aridez d’alma;
Agora que és escrava do Lamento
A calma que possuíste não te acalma.

A honra de louvar-te tu me deste:
Tuas vestes alvas eu toquei faminto,
Abrasando com sangue o azul celeste;

Mas agora que morres na desgraça,
Só me resta beber da fina taça
Onde deixaste a dor que agora sinto.
Perdizes, setembro de 2009

A decisão de outros caminhos


Quando soube que Amor o não queria
Para o banquete do estertor carnal,
Desprezou a mulher que dele ria
E foi tentado a praticar o Mal.

Deserto o peito, ainda conseguiu,
Nuns laivos acres de cantor do azul,
Reconstruir de Nada seu covil
Para abrigar o Sonho ainda nu.

Viu-se senhor dos ares rarefeitos
Onde o recôndito de pouco-ser
Escraviza o talento dos Eleitos;

Mas decidiu seguir outros caminhos
Como a ave nômade que estende as asas
E procura o conforto de outros ninhos.
Perdizes, setembro de 2009