"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A carne e o mármore

Esta forma inautêntica de carne
que Deus me revestiu
por sua própria vontade se fez mármore
e a si mesmo esculpiu.

Já cansada de sangue a circulhar-lhe
resolveu virar pedra.
Num espelho inda olhou seu belho talhe
de onde a dor sempre medra;

E imaginou-se além da humana vista -
essa ilusão atroz, não mais que engodo -
e começou a abster-se da Conquista,
pois a Conquista não possui um rosto.

Tentaram deformá-la um dia ainda
dizendo-lhe elogios coloridos.
Mas a Forma possui razão infinda
e talha essa razão nos próprios vincos.

Por ela a Morte apaixonou-se
e agora a não pode largar.
Consigo trouxe do mais doce
desejo lúbrico de amar.

Mas esse desejo talvez seja uma ária
cantada na noite em que a noite é sozinha;
talvez seja a luz que a si mesmo compara,
espelho fechado por muita neblina.

Carne-mármore
cristalina.
Forma frágil
sem saliva.

Araxá, dezembro de 2008.

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