"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Espera


Eu te esperei por muito tempo,
Por muito tempo eu aguardei:
Sentei-me longe, na distância,
Aonde ninguém passa

Mas tu não vieste celebrar
O que de mim era perfeito...
Fiquei sozinho
No que de mim fosse o caminho,
No que de ti fosse magia...
Não senti dor,
Nem mesmo a dor da alegria.

Agora vens dissimulada,
Deténs poder de possuir
A minha carne imaculada.

És elixir.
De ti não beberei.
Talvez nem saiba prosseguir
Nesta terra sem lei.

Mas ficará tua lembrança,
Aragem no deserto.
Um fio tênue de esperança
Imaginar-te bem de perto...

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Abertura


Escrevi este livro necessário
Para guardar as cinzas do Passado.
Se acaso o verso parecer forçado
E por de mais prosaico e precário

É que o fiz no escuro, quando a noite
Torna-se imensa como um precipício.
Ele contém a dor da vida, o açoite
Das almas que se entregam ao sacrifício.

Sou moço ainda. A juventude pulsa
Com a força do veneno mais letal;
A água que bebo só me traz repulsa,
O alimento que como me faz mal.

Mero artifício de Arte inacabada,
O meu livro é composto, essencialmente,
Dos matizes sangrentos da alvorada
E das tristezas vãs de toda a gente.

Assim, quando o abrir, leitor funesto,
(Todo leitor tem amizade à morte)
Verá que concebi meu manifesto
À revelia de mostrar-me forte.

Das imagens etéreas, do crepúsculo,
Da Lua amiga dos que não têm sono,
Do ancestral espasmo de um músculo,
Do Amor que sinto – meu senhor e dono:

Recebam agora as homenagens frias
Da alma perdida que só quer descanso.
O meu livro é a síntese dos dias
Nos quais meu coração era um demônio manso.
Perdizes, novembro de 2009

Liberação


Tu podes celebrar as tuas bodas
Com quem quiseres, pois serás amada;
As alegrias que buscares, todas
Virão no seio da manhã raiada.

Tu podes perfumar teu corpo esguio
E oferecê-lo ao Príncipe que sonhas;
Ele virá como um animal no cio
E tu serás Princesa das Vergonhas...

Quanto a mim – condenado a ser sozinho,
Vou voar, voar feito um passarinho
Que projeta no céu a dor das asas.

Se me comparo a ti, reflito adrede:
Foges do incêndio que meu peito pede –
Enquanto eu ardo em minhas próprias brasas...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A causa do meu mal


Saber-te pura como um canto de ave,
Como o balbuciar de uma criança;
Saber-te dona da dourada chave
Que abre as janelas de minha esperança.

Saber-te luz primeira da alvorada
Que leva a noite para descansar;
Saber-te imagem clara e perfumada,
Diante da qual me irei ajoelhar.

Saber-te templo, e desse templo o deus,
Saber-te o gesto triste de um adeus,
Saber-te fantasia em tom real;

Saber-te mais e muito mais ainda:
Reconhecer-te à minha imagem finda
Quando souber-te a causa do meu mal...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Soneto


Se há um Deus, se Dele a vida brota
Para o ciclo nervoso da matéria,
Se ao final desta guerra a luz derrota
A escuridão fatídica e funérea,

Se Ele jogara um anjo ao precipício
Para que os outros anjos o temessem,
E tudo retornasse a um só início,
E nesse início os homens padecessem,

Se Deus (ou outro nome e outra sina)
Ao fim de tudo esquece, e assim termina
Por perdoar ao pobre pecador,

Por que magoa tanto a nossa alma,
Se no final Ele a acolhe e a acalma,
Se no final Ele lhe dá calor?!...

A bailarina


A Jenny Galdino

A bailarina o véu trespassa
Com gestos fúlgidos de moça:
O que de dança ela mantinha,
O que de mel tinha na boca.

O que de simples fosse a dança
Em pano, sapatilhas novas:
São sapatilhas de criança
De pé alheio a novas provas.

O que de jovem pareceu
Dançar sapatos velhos,
O que da vida pereceu
Andar com passos cegos.

O mundo a bailarina pisa
A dor da dança ela comete:
Na alma, não nos pés,
A bailarina se reflete.

É comovente essa linguagem,
É nebuloso aprendizado:
A dança nela é tinta-guache
Em quadro novo, inacabado.

Outras platéias quer agora,
Outros teatros redourados
A bailarina rememora
Vernizes visuais e vários.

Agora dança em outra órbita
Em outro estágio se mantém:
Acaricia a luz sonora
E faz o ritmo de refém.

Um passo... dois... três passos grandes
No palco estranho destas formas;
Um sonho novo que se expande
Sem normas.

Em tudo fica um céu aberto
Quando ela dança, lenta câmera:
O corpo claro, circunspecto,
Cortando o vento feito lâmina.

O giro entanto só é perfeito
Se há alguém a acompanhá-lo:
Dois corpos livres, desespero
De abandonar o ser estático.

Nos vãos do solo o rodopio
Dos passos castos, vasto embalo:
Um gesto franco no delírio,
Estilo só de abandonado.

Talvez o ritmo da passista
Explique mais do que o silêncio,
Penumbra de paisagem prisca,
Afago, vôo, contentamento.

Talvez não saiba por que dança,
Por que aprendera o andar das plumas:
Só quer o encontro de outros passos,
Para poder dançar na chuva.
Araxá, maio de 2010

Soneto


Os meus sonhos de amor são dois velhinhos,
Enrolados na manta da agonia;
Só se alegram ao ouvir os passarinhos
Que a Esperança alimenta todo dia.

Quando jovens, colhiam dos caminhos
Rosas de prata que a manhã trazia;
Não lhes magoava os ásperos espinhos
Nem tampouco o nascer da aragem fria.

Prelúdio outonal, ânsias de abandono:
Todas as rosas, já com muito sono,
Fenecem na aridez de outra estação;

Da mesma forma os sonhos vão dormir:
Encorajados sempre a prosseguir
Terminam por murchar no coração.
Araxá, em 2010