"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009



Fiz do céu um fardo
Azul de carregar,
Pesado pra sentir
Demais.

Fiz da juventude
Oh, minha amante!...
Um braço torto
Que se despedaça e cai.

Senti-me diferente
Como o Deus
Sem par.

__Ah, mas és jovem
Para continuar – disse o mundo
Aos meus ouvidos de barro.

SSSSSSSSShhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!!!
O vento passa e tropeça.
Nas nuvens.

Nunca serás tão belo
Quanto és.

Irmão da Tristeza,
Genitor do Sol,
Estrelas multicores.

Somos Astros
Sem Universo.

Perdizes, outubro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O homem na janela


__ Ele me parece terrivelmente infeliz!... - disse a garota que o observava, a fumar, encostado à janela.

__ Sim, é muito infeliz. Mas tem um ar tão superior que a maioria das pessoas pensa que a vida lhe deu apenas dias bons. Escolheu o caminho mais difícil - o da Arte - não só a Arte como um objetivo, na maioria das vezes fútil; ele vive essa Arte, contempla o céu de uma forma que eu jamais conseguiria... Arte vivida. Além disso, sente demasiado. Entrega-se ao amor de forma estarrecedora, vive-o em cada respiro, busca a mulher amada em cada pensamento, desespera-se em cada gesto. Eu sei que ele ainda ama, ama da mesma forma que antes, mas agora é pior: ele ama e despreza, deseja e odeia. Se você soubesse a quem ele vota todos os seus dias, ficaria estarrecida. A mulher a quem ele adora - pois ele em verdade a adora - é o oposto de sua opulenta erudição.

__ Ela o desprezou? - indagou a jovem.

__ Sim. Talvez por simples capricho de mulher inexperiente e tola, ou
talvez ainda por medo. Medo de se confrontar com tamanha sensibilidade, tamanha entrega por parte dele. Medo até mesmo de que ele, ao contemplá-la com os olhos cruéis da realidade, tomasse-a pela forma com que ela mesma se vê.

__ Um homem desses deve ser um abismo imenso, um ser de matizes raros.

__ Venha comigo, eu to apresentarei.

Perdizes, outubro de 2009

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Promessa adiada


Prometi-me esquecê-la quando pude
Reconhecer, ainda assim com pena,
Que o meu amor, tão cheio de virtude,
Era um ator medíocre entrando em cena.

Prometi acabar com essa história
De ficar lamentando o que pudera
Ter sido, e no vazio da memória
Apreciar a suposta primavera.

Nesta ânsia de delírio e de tormenta
Minha fronte se torna macilenta
E os meus lábios destilam sangue e fel;

Sem cansaço, teu nome inda persigo,
E em nisso habita o espectro do perigo:
Renegar o amor sendo-lhe fiel...
Perdizes, outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Espelho vivo


É um mendigo que se orgulha
De ter perdido a própria casa
E agora a casa ser a rua.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Soneto


A quem pudesse errar assim como eu
Amante do erro sou, e mais pudesse
Cantar com mais tristeza do que Orfeu
Cantou sozinho a derradeira prece;

A quem pudesse amar como amei
A criatura indigna que despreza;
A quem soubesse a solidão de um frei
Que não tem esperança e ainda reza,

A quem soubesse ver-me como sou
E a minha vida a seiva alimentasse
No acalento materno de outra infância...

Eu lhe daria a dor de quem amou
Traduzida num beijo alheio à face.
Um beijo sem ternura e sem ânsia.
Perdizes, outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O retorno


Voltou a fazer versos
Com o quase o mesmo arroubo
Daqueles outros tempos
De louco.

Os bolsos sem vintém
Reclamam alimento.
Prometeu possuí-la
No vário do momento.

É mais um ser eterno
Mas inda não é anjo.
Um pouco mais sincero
E estranho.

Ensimesmado, rói
O pão que lho mandaram.
Observa-se no espelho
E vê que é muito raro.

Mas sempre que alimenta
O corpo de misérias,
Rebenta no seu corpo
Outra moléstia.

Pouco sabe da vida
Egressa (se a teve);
Esconde os infortúnios
E tem sede.

Pouco sabe do amor,
Apesar de estorcer-se
Quando possui um corpo
No ardor da rede.

Enquanto vive, vai
Por caminhos estreitos
Desordenando vidas
E entorpecendo leitos.

Talvez da mágoa guarde
O círio e a vela acesa;
Talvez sua musa impura
Não possua beleza.

Os versos, as estrofes,
As rimas e a métrica
Nascem silenciosas
No berço do poeta.

E quando ele acredita
Saber fazer poemas
Mal sabe que só paga
As próprias penas.

Assim como se envolve,
Assim como se encharca
Do pranto que o comove,
Da máscara que o guarda

Não pode ser sincero
Mesmo que fosse em sonho,
Não pode ser na vida
Do lar paterno o escombro,

Mal sabe, inconseqüente,
Dos atos que produz
Nem se lhes toma conta
Nem se lhes reconduz.

Voltou a fazer versos
Feroz e solitário.
Voltou a fazer versos
Como um desesperado.
Perdizes, outubro de 2009