"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Fingimento

Converti-me à religião de amar-te.
Nela não há sacrifícios nem temores.
Não há altares nem joelhos postos ao chão:
Há apenas uma vela efêmera
Que arde terrena no meu coração.

A Deusa não pede loas
E muito menos sacrifícios altos:
Ela deseja ósculos vermelhos
E flores de asfalto.

Um pouco mais me tornaria escravo
De tal divindade momentânea.
Mas minha fé sempre estará a salvo,
Pois que se fez intrepidez e chama.

Religioso excêntrico, praticante de heresias várias:
Desnudo o corpo do ser eleito
E o cubro de beijos no estertor das galas.

Ó minha Deusa, por que a vida é fugaz?
Eu morro quando te desnudo o manto
Mas tu não morres, antes vive mais...

Eu sofro a antítese do sol que nasce
Enquanto meu desejo expira;
Sofro a angústia de tocar-te a face
No enterro da noite, início do dia.

E tu recendes a incenso e mirra
Quando a manhã te levanta:
Eu vejo-te humana em minha fantasia,
Mesmo sabendo-te santa.

Há um Deus! Tu me disseste e agora eu acredito.
Ele criou o peixe e deu ao homem a rede;
Criou os bosques para os passarinhos,
Criou-te a ti para matar-me a sede!

E eu bebo em teu corpo que límpido jorra,
Eu como do pão que me ofereces:
Dar-te-ei pagamentos em ouro
Através do tesouro escondido em minhas preces...

Iremos felizes, as mãos muito juntas
Durante a viagem sem nome e sem tempo.
Iremos colhendo do chão as perguntas
Que a vida nos traz pelas asas do vento!

A fé que me move não move montanhas.
A Deusa que adoro é apenas humana...
Mas é quem eu amo.
Sou crente de um ser divinamente humano.

Nenhum comentário: