"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Para acalentar um amor


Escancara o amor que guarda avaro
Como se fosse ouro:
Ele será o seu único amparo,
Seu único tesouro.

Mesmo que nunca saiba protegê-lo
Dos ventos que hão de vir,
E que a chama se torne um dia gelo
No vindouro devir,

Escancara a violência de querer
Encontrar-se noutra alma,
Escancara, escancara todo o ser,
Sem vergonha nem trauma.

Escancara o amor que guarda avaro
Como se fosse ouro:
Ele será o seu único amparo,
Seu único tesouro.
Perdizes, novembro de 2009

O diletante

Apesar da roupa velha,
Cheia de manchas e furos,
Do chapéu de abas cansadas
E dos passos inseguros;

Apesar dos aros tortos
Nos óculos mal cuidados,
Das calças puídas grossas,
Da feiúra dos sapatos;

Apesar da embriaguez
Tomar-lhe todo o dinheiro,
E de ter por agiota
O sórdido taberneiro;

Apesar da fama ruim
Debitar o seu imposto,
E a escolha da gravata
Ser de um extremo mau- gosto;

Apesar do pouco fôlego
E da tosse impertinente,
Dos cigarros mui baratos
Comprados inutilmente;

Apesar da dor que sente
Ser apenas o prelúdio,
Das horas insones gastas
No desespero do estudo;

Ele inda vai escrever
Sem objetivo, sem meta,
Pois sua maior diversão
É fingir-se de poeta.
Perdizes, novembro de 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A janela do quarto

A janela vidro e aço
Abre o mundo mas divide
Duas formas alternadas:
O ver-se com olhos mais simples,
Na separação de outro espaço -
E ainda outro que os prescinde.

A altura da janela
Não dá vertigem nem medo,
Mas esconde na esquadria
Súbitos segredos.

Clara a cor, já desbotada
Pelo tempo os malefícios
A janela envidraçada
Dá de frente para o Cristo.

Tal estátua - não de gente –
Tem os braços sempre abertos;
No disforme do concreto,
Vem abrir fechar secretos:
Expande-se, logo o sol
Clareia o branco dos braços
Numa estatura de cal
Qual gigante dos espaços.
Alinha-se, independente,
Contra o verde ao seu redor;
Tal estátua – não de gente –
Mas parece ter suor.

O que constroem, da janela,
Deixa ver incongruências
Da falta de arrimo, poste
Sem dividir dependências.

A luz artificial
Que brota pela janela
Deixa ver o claro elétrico –
Um cego às apalpadelas.

Diversidade de esquadros
Outras janelas vizinhas
No fumê de seus matizes
Reencontram-se, restritas
Ao ângulo fantasiado,
Ângulo morto, invisível
De um lado em outro lado
Só se vê possíveis trincos.

Dessa altura momentânea
Que é estar sobrepesando
O vazio que há embaixo
Machucado subcutâneo,
Mede à força com arrasto
O sentir-se nas alturas –
Palmo a palmo, braço a braço
Exato de arquitetura.

Nessa divisão real
Do exterior com o fechado
Principia outra medida
Da janela até o asfalto.

Três andares, três colunas,
Antitéticas ao três:
As colunas retilíneas
Muita brita e robustez,
Descascam, se no horizonte
A abrangência está completa;
Alheias a qualquer homem
De inteligência arquiteta,
Tais colunas necessitam
Da metálica estrutura
Que delimita os contornos
De uma a outra coluna.

Da janela do meu quarto
Dividi outros espaços:
Luz contínua que brota
Refestela-se, exata;
Dentre todos os quadrados
O maior é sempre másculo:
Qual o homem sem medidas
Que ilimita o próprio estado.
Perdizes, novembro de 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


Cansei-me de esperar, Musa querida,
Pelo afago sereno do teu gesto;
Nada percebo, nada sou na vida,
Só em verso medíocre manifesto
A minha égide, qual fosse Efesto
No pesadelo de forjar tal arma;

Sou um guerreiro, um guerreiro sem batalha,
Fui Dom Quixote, mas sem moinhos de vento;
A minha guerra é outra: é contra o pensamento,
Possuo no pescoço a mais fria navalha.

Musa fatal! Teus lábios, quem mos dera!...
Já não espero a chance de mordê-los,
Nem necessito de sentir-te minha!
Jamais! Jamais! A terra os meus cabelos
Já afaga! O frio, a campa, a noite fera
Está ao meu lado, sempre ao meu lado caminha!...

Daí, por pouco, me fizera louco,
Louco de pedra, doente dos doentes,
O meu desejo trago entre os dentes,
Minha loucura cresce, pouco a pouco,
Como se me viesse uma ânsia de degredo,
Como se a vida me tecesse a medo
Eu faço desta insânia a minha prece.
O que é eterno nunca esmorece.

Ó virgem das celestes alvoradas!
Vejo cabeças de crianças, decepadas,
Observo os sacrifícios mais abjetos!
De pesadelos os meus sonhos vão repletos,
Apenas sinto, com a cabeça muito calma,
A noite, a noite a extinguir minha alma!...

Como se navegasse ao léu, sem direção,
Aberto aos ventos vai meu coração.
Sem amor para amar, sem beijos pra sorver,
Só me resta o infortúnio de ver-me morrer!

Nada da vida vale a pena, nada é real,
Ó minha Musa, ó minha Musa divinal...
Dá-me o perfume que teu corpo encerra,
Aroma tal que não encontro nesta terra...

Onde estão minhas asas? Será que as cortei?!
A brisa está propícia ao vôo do poeta.
Mas prefiro o abismo... aonde reinei
Quando tive de ânsias a alma repleta...

Se ainda desejo a tua presença
É porque, idólatra, não me desfiz da crença.
O Nada que busco compele-me a amar,
O peso das asas me priva de voar.

Os tempos de vitória, aqueles tempos,
Na sucessividade dos momentos
Apagaram-se. Agora, em tempos de paz,
Sinto-me um vagabundo, mutilado e incapaz.

A metafísica! Pensar depois do túmulo!
A podridão revela-se em cada sinapse,
Poder, com a mente fraca, atingir o ápice!...
Mas quando penso, sofro o acúmulo
De não poder pensar, de reduzir-me a fumo,
De sofrer cada angústia, cada desespero,
Do interior do cérebro à raiz dos meus cabelos...

Como quem já morreu e ainda vive
Minha vida defunta se divide
Entre olhar o que foi, o que já não existe,
E o presente irreal, que me deixa mais triste.

Os tempos de colheita – eu que nunca semeio –
Cobrem de arrependimento o meu enleio;
Se nas covas profundas meu corpo estremece
É de nunca ter tido o calor de uma prece!...

Cansei-me de esperar, Musa querida,
Pelo afago sereno do teu gesto;
Mas se de nada valho, nada sou na vida,
Ainda tenho forças pra mostrar-te o quanto presto!
Perdizes, novembro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O Deus destas esferas


O sol se põe. A máscara noturna
Aparece magnífica e soturna.
Enquanto os olhos do áureo astro morrem, as estrelas
Traçam uma dança luzidia pelas
Curvas aéreas do horizonte.
Aves cansadas, de rapina,
Voltam aos ninhos, recebendo a aragem fina
Pelas asas compridas.
Corujas aboletam-se entre ermidas
Sonhando a solidão de outras vidas.
Enquanto os animais tendem ao sono
Seus instintos têm ânsias de abandono.
Adormecido o mundo, a lua ressuscita
Trazendo a luz que a noite necessita
Para inspirar insones mensageiros
Que carregam no seio os ímpetos primeiros.
A noite é bela para quem medita
E traz consigo a alma aflita.
A Humanidade dorme
Na solidão enorme.
Mas como em toda regra há exceções,
No seu próprio compasso os corações
Batem, e a forma com que batem é que governa
O reino físico da alma superna.
Em cada singularidade, em cada estouro,
O Ser recebe o seu maior tesouro:
Continuar vivendo, não obstante a morte
Ser a certeza que põe termo à sorte.
No alto do monte, as pedras são espelhos
Da lua, emaranhadas nos artelhos
Antigos de árvores e de heras.
As rochas contam muitas primaveras.
Desde o início dos tempos, quando o mundo
Nascera no Universo - esse abismo profundo -
Os corpos minerais viajavam como as aves,
Num desejo feroz de sobrevoar todas as naves.
Por acidente (ou, como queiram, por evolução)
Da pedra concebeu-se a plantação.
Que distância entre as pedras e a clorofila...
Sequer a biologia é capaz de medi-la!
A verdura é o oposto do minério,
Pena a ciência os não levar a sério...
Quando é mister alimentar a fome
Não há conhecimento que se some
A tal ânsia nervosa, a tal desprendimento,
Que o da terra seca alimentando-se do vento!
Parindo plantas e plantando paus
No matemático exemplo do caos,
Fora das espirais ou dos efeitos-borboleta
A Natureza é o deus deste planeta.
Perdizes, novembro de 2009