"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Momento de nirvana

"_ Bem vinda à minha casa. - eu te agradeço
pela boa intenção com que vieste.
Descalce as botas. Tens o meu apreço.
É-me agradável este teu ar celeste."

Saudei-te assim, e, dessa forma, entraste
Na alcova deste que da vida é farto.
Eras tão bela que um fatal contraste
fez-se presente entre a tua luz e o quarto.

Amamo-nos. Teu corpo era a seara
onde meu corpo nunca descansara.
O sol chegou com lances de ouro puro.

Ah! Naquele momento de nirvana
tu me fizeste amar a forma humana
do teu corpo entalhado com apuro...

Araxá, em 2008

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terça-feira, 28 de outubro de 2008

A exatidão do mundo antigo

Cada vez que me observo interiormente
através dos espelhos da retina,
sinto-me como um ser que já não sente,
e por pouco sentir, só se imagina.

Toda estrela tem brilho diferente,
toda mentira ainda é cristalina.
Lembro-me de quem fui, e, vagamente,
sei que minha alma é uma hórrida assassina.

Já fui, por certo, o sonho de meu pai -
equlibrista sóbrio que não cai -
e minha mãe me aconchegou no inverno;

Mas a vida traiu-me, silenciosa,
e um silêncio vil de qualquer coisa
me fez calar neste silêncio eterno.

Araxá, em 2008.

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terça-feira, 14 de outubro de 2008

Soneto improvisado em um guardanapo escuro

Nesta semana em que ninguém trabalha
(pelo menos aqueles que conheço)
cortarei o meu corpo com a navalha
pr'a ver se dessa forma eu desfaleço.

Busquei o teu carinho, o teu apreço,
e tu me deste o pano da mortalha
com que me visto agora, e reconheço
minha existência totalmente falha.

Já podem preparar a campa escura!...
Nada desejo além da sepultura,
nada observo senão um sumidouro;

E quando eu estiver com os braços frios
talvez os meus ignóbeis desvarios
possam tornar-se os meus castelos de ouro!

Araxá, em 2008.

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sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Pela surpresa que me fizeste

Agora que possuo o teu segredo -
Esse brilho no olhar que te estertora -
poderei me livrar deste degredo
que outro amor me condenara outrora.

O teu segredo eu o possuo agora -
esse lábio que a mim se abriu a medo -
como um lírio do campo que bem cedo
se encontra aberto pela luz da aurora...

Venhas! Meus lábios querem o teu beijo
e o meu desejo busca o teu desejo...
Não há virtude se não houver pecado...

Agora sei que a Sorte por mim vela
e atende por um nome: Graziela...
Um anjo que merece ser amado.

Araxá, em 2008.

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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A uns olhos negros

Meus sonhos são estátuas deformadas,
criações imperfeitas de um artesão
que tem por ferramenta duas espadas:
uma em sua palma, outra no coração.

Das estátuas se ignora a imperfeição,
pois com vestes celestes adornadas
possuem o encanto estático das fadas
dormindo sob a auréola da Ilusão.

Um dia elas serão por mim despidas,
e o álacre das chagas, das feridas,
mudar-lhes-á o aspecto embevecido;

Mas a ternura dos teus negros olhos
esconderá os pútridos escolhos
que a outros olhos têm sobrevivido.

Araxá, em 2008.

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