"A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.” (Bernardo Soares)

terça-feira, 13 de abril de 2010

DIVAGAÇÕES DA CERTEZA


Mesmo se aqui a não tiver, por entre os ramos
Deste jardim perfeito,
Hei de lembrar-me o quanto nos amamos
No calor do seu leito;

Mesmo que a sombra faça escuro o que era claro
E emudeça o sonoro,
Hei de deixar no lábio o mínimo de amparo
Daquela a quem adoro;

Mesmo que o céu expulse as estrelas brilhantes
E deserto se faça,
A lua surgirá p’ra todos os amantes
Quando Amor os enlaça;

Mesmo que os braços já não possam abraçar
A criança querida,
E ensiná-la os primeiros esforços de amar
A sua própria vida;

Mesmo que tudo desmereça a ação piedosa
De acolher um mendigo,
E depois disso tudo ofertar-lhe uma rosa
E chamá-lo de amigo;

Mesmo que a mãe rejeite o filho e o deixe ao léu,
A vagar sonolento,
As nuvens se abrirão e ele verá o céu
Abrir-se ao vão do vento;

Mesmo que a Morte venha, e eu sei que ela virá
Para elevar meu canto,
Eu levarei de mim a hora boa e a má,
Áurea coroa e manto;

Mesmo que o poema seque e na aridez pereça,
Voltando ao que era dantes,
Vai ficar no papel uma nódoa espessa
E depois há de vir quem reconheça
Verdes vestígios, diamantes.
Araxá, em 2010.

UM TOQUE


Gostaria de saber
Por que me negaste um toque.
Seria apenas esmola,
Esmola para quem sofre.

Fosse preciso carícia
Ou até mesmo ternura,
Não to pediria assim
Desesperado de chuva.

Um toque muito suave,
Dos teus dedos sem retoque,
Um toque teimoso de ave --
Não afago, apenas toque.

Entretanto mo negaste:
Coisa simples, sem valor.
Um simples toque na face
De quem sofria de amor.
Araxá, em 2010

TEMPO DE GUERRA

Sentado à beira da praia, sentindo o vento,
Vejo uma embarcação cheia de mulheres:
As viúvas dos que estiveram na guerra.
Medonha, perdida, sangrenta.
Vêm acompanhadas.
Acompanhadas por soldados inimigos.

SÍNTESE


Poesia: impressão
Do que se vive em vão –
A vida é o esperar morrer.

Porém se não a escrevo
Desconheço o relevo
Que minha alma há de ter.

O AMANTE EM SEGREDO


Sinto a ironia bafejar meu rosto
Quando me olham, bordados de festejos;
Comentam entre si o extremo gosto
Com que da solidão eu sorvo os beijos.

E eu passo, fomentando comentários,
Por entre a turba dos gracejadores;
Mal sabem a pequenez dos seus salários
Frente à dissipação de meus amores...

Quem muito ouro possui, sempre o esconde –
Sem que ninguém suspeite dele, aonde
Menos se possa, cobiçando, olhar;

Da mesma forma, príncipes, procedo:
Enquanto vós falais, amo em segredo,
Pois só em segredo é que se pode amar.

DISTÂNCIA


Mudei da minha vida o rumo
E não havia um só motivo.
Drasticamente, eu a resumo:
Apenas sei de que estou vivo.

Apenas vou noutro caminho,
Talvez nem saiba aonde dará.
Não vou contigo, eu vou sozinho.
Vou carregando o meu azar.

DA ESCRITA IMPENITENTE


O sol aquece enquanto a lua esfria.
A lua traz a noite, o sol o dia –
Porém meus versos nunca trazem nada.

É isto que os condena eternamente:
Enquanto a lua é fria e o sol é quente,
Meus versos são a prece apenas murmurada.

A ÓRBITA DO DESENCANTO


Ninguém contempla o céu como eu o contemplo.
Meus olhos são azuis de contemplá-lo.
Acordo, e lá está – o único templo
Acima de qualquer terrestre abalo.

Se está alegre, encontra-se aberto,
Fechado fica se contrariado;
Se a noite o deixa de clarões deserto
À lua o brilho pede-lha emprestado.

Mas quando chega a tempestade e o raio
O céu desaba em súbito desmaio,
E enche de púrpura o divino manto.

Ninguém contempla o céu como eu o faço,
Com a certeza de que há muito espaço
Fora da órbita do Desencanto.
Araxá, em 2010

A ESCRITA DOS DEFUNTOS


A minha inspiração é tão pequena
Que resulta na imagem pouco clara.
De nada importa... a poesia encena
O drama com que nada se compara.

É difícil, entretanto, coordená-la
Ou conduzi-la no estertor da pena.
O perfume, porém, que dela exala
Deixa inveja na rosa e na açucena.

Já me disseram que cantar com métrica
Deixa no poema uma paisagem tétrica,
Como se fosse escrito por defuntos;

Mas é assim que canto e sei cantar:
À sombra do passado tumular
Eu amortalho todos os assuntos.